“Você não pode ser best-seller por 30 anos sem ter alguma qualidade”
PublishNews, Maria Fernanda Rodrigues, 06/08/2010
Isabel Allende fala sobre literatura, personagens e família

Como todos os escritores bem-sucedidos, Isabel Allende sofre preconceito. “As obras best-sellers estão muito desprestigiadas. Todos acham que aquilo não tem qualidade, mas você não pode ser best-seller por 30 anos com 18 livros publicados sem ter alguma qualidade”, diz a escritora chilena que está no Brasil para participar da 8ª Flip e lançar A ilha sob o mar (Bertrand Brasil).

Na manhã desta quinta-feira (5), ela conversou com jornalistas e mais tarde, com Humberto Werneck e os visitantes da Flip. Ela falou sobre literatura, família, política, inspirações, personagens autobiográficos e mais. Contou sobre o tesouro que tem guardado no closet de sua casa – caixas e mais caixas de correspondências, que só deixaram de ser diárias porque inventaram o skype, trocadas com a mãe ao longo de muitas décadas e que nunca serão lidas por ninguém.

Se sua vida virasse um filme gostaria que Penélope Cruz fizesse o seu papel, embora preferisse que essa atriz fosse “loira e de pernas compridas”. Não queria envelhecer e imagina que vai continuar encolhendo até caber no bolso da camisa de William Gordon, seu marido. Espera também ter cabelos e dentes e diz que a única coisa boa do amadurecimento é que a pessoa deixa de ser vaidosa, arrogante, orgulhosa e mesquinha.

Ela disse ainda que não seria escritora se não tivesse acontecido o golpe militar no Chile e que provavelmente ainda seria a “péssima jornalista” que era – ideia compartilhada por Pablo Neruda, seu poeta de cabeceira. Por fim, transformou seus defeitos jornalísticos em virtudes literárias e aos 68 anos não pensa em parar. “Continuarei escrevendo e serei uma velhinha um pouco louca”, brinca

Literatura

Isabel Allende conta que está em dia com a literatura brasileira, mas acompanha o novo boom da latino-americana. Diz que há muitos bons novos escritores e que odeia Roberto Bolaño. E se justifica, “mas ele também odiava todo mundo”.

Para ela, algumas ideias são como sementes. “Algumas me molestam de um jeito que tenho que começar a escrever”. De acordo com a escritora, ninguém sabe se um livro terá êxito. “Às vezes se tem uma boa história, mas ela não encaixa. O livro tem que chegar no momento em que a pessoa precisa ouvir aquilo”, afirma.

Ao escrever, conta que ri, chora, sofre e tem dor nas costas, mas adora o ofício. Esse processo, para ela, é muito alegre - embora as três primeiras semanas sejam terríveis porque os personagens ainda não estão definidos. “Mas o que me cansa mesmo é o resto: promoção, viajar, responder a perguntas”.

Disse preferir as cenas eróticas sutis, mas brincou que espera a morte da mãe, que lê todos os seus livros, para escrever um romance “verdadeiramente erótico”.

Todos os seus livros têm qualquer coisa de autobiográfico, mas ela não se preocupa com a exposição – sua família, sim. “O que te faz vulnerável são os segredos que você guarda, e não as coisas que você conta”. Sobre a família, disse que alguns ficaram anos sem conversar com ela depois de A casa dos espíritos, mas que todo esse desconforto passou quando saiu o filme e eles se viram na pele de Jeremy Irons e Meryl Streep.

Escreve ficção em espanhol e não ficção em inglês. Não daria para ser de outro jeito, diz. “A literatura sai no ventre, e não da cabeça. Não dá para parar para pensar e então escrever”. Para ela, a escrita vem da memória, da experiência, do sentimento. E há um pouco do autor em cada personagem, garante.

No dia a dia, se distancia dos ruídos do mundo e se refugia no trabalho solitário e silencioso. E aí há espaço para a imaginação, pressentimentos e intuições, conta. “Sinto que os personagens existem e que os escuto... é como uma mágica. É muito trabalho, mas algumas coisas não são minhas, são dos espíritos”.

Isabel já fez muita terapia na vida e acredita que quando alguém se conhece profundamente é mais fácil deixar a fantasia aflorar. E para ela, é possível escrever a partir da alegria.

O fato de seu marido ser americano e pensar saber falar espanhol tem consequência em sua escrita. “Tenho que pagar um revisor na Espanha para que tirem todos os “willismos”. Para se curar do inglês, lê Neruda, seu poeta de cabeceira. “É a voz do Chile para mim. Nos Estados Unidos ele me ajuda com o idioma”.

Embora considere ter sido uma péssima jornalista, por mentir, inventar e não ser objetiva, ter trabalhado como tal a ajudou a usar a linguagem de forma mais eficiente, a investigar, a buscar a fonte de informação, a trabalhar contra o tempo. “O jornalista sabe que há um leitor do outro lado. Os escritores se esquecem disso e escrevem para o amigo, para ele mesmo ou para a crítica. Eu sei que tenho um leitor e quero prendê-lo.”

Em sua conversa com Humberto Werneck, contou ainda sobre o dia em que Neruda a chamou em sua casa. De pronto a então jornalista comprou um gravador, lavou o carro e foi vê-lo. Mas ele não queria dar entrevista já que ela era a pior jornalista do Chile! Mas disse que seus defeitos jornalísticos seriam virtudes na literatura. O tempo e seus best-sellers mostraram que ele estava certo.


A cobertura dos festivais pelo PublishNews tem o apoio da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
[06/08/2010 00:00:00]