Há uma certa premissa na escrita filosófica que exige que o autor se confronte com interlocutores. No caso particular de Nietzsche, essa exigência se converte em verdadeira obsessão, de forma que, no conjunto de sua obra, o filósofo alemão expressa das mais diversas maneiras a necessidade de ter aqueles a quem se dirigir, seja na forma de “diálogos” ou de “duelos”.
Essa busca inquieta por seus interlocutores é o tema do livro Nietzsche, seus leitores e suas leituras (Barcarolla, 168 pp., R$ 38), da professora titular de Filosofia Contemporânea da USP, Scarlett Marton. Dos oito textos presentes no livro, boa parte ganhou uma nova versão de estudos publicados originalmente em obras coletivas ou periódicos de Filosofia. Agora, reunidos em uma única publicação, perseguem o objetivo de investigar a complexa relação que se estabelece entre texto, autor e leitor dentro do pensamento nietzschiano. “Ao fazê-lo, é o estatuto mesmo da escrita filosófica que tais ensaios procuram discutir”, afirma Marton na apresentação do livro.
Refém de sua necessidade de ter aqueles a quem se dirigir, Nietzsche não hesita em recorrer aos mais diferentes meios para atrai-los, provocá-los e levá-los a toda espécie de tentações. Seus textos são exemplares nesse sentido; lançam “iscas”, atiram-se como “anzóis”. Apresentam uma pluralidade de estilos e introduzem o perspectivismo na linguagem; empregam tropos, metonímias e metáforas e usam as mesmas palavras em sentidos diversos.
A busca por esses interlocutores, no entanto, revela-se pouco eficaz. Em Assim falava Zaratustra, por exemplo, Nietzsche manifesta sua busca recorrente por “companheiros de viagem” e, ao mesmo tempo, reconhece tratar-se de “um livro incompreensível”. Para Scarlett Marton, o filósofo, nas mais diferentes ocasiões, tenta explicar o abismo que separa o desejo, que dele se apodera, e sua realização, permanentemente adiada. Nesse sentido, Nietzsche “teria nascido póstumo; seus escritos seriam extemporâneos; estaria à espera de leitores ainda por vir. Sem interlocutores, acha-se ‘mortalmente silenciado’. Sem reconhecimento, não encontra olhar exterior que o legitime”, diz a especialista.
Sua exigência de confrontar-se com interlocutores rapidamente se torna uma exigência de defrontar-se com certos leitores. A estes quer propor um permanente “duelo e diálogo” com seus textos. Mas é também para entabular um “duelo e diálogo” permanente com os autores dos livros que elege que se põe diante deles. Os ensaios que compõem Nietzsche, seus leitores e suas leituras perseguem ainda o objetivo de discutir a complexa relação entre texto, autor e leitor no contexto do pensamento nietzschiano. Ao trazer à luz traços peculiares da obra do filósofo, todos eles voltados para essa questão, o livro avalia o sentido e aquilata o alcance do caráter extemporâneo que Nietzsche reivindica para a sua filosofia.
De uma forma ou de outra, Nietzsche acabou por se encontrar com autores e leitores variados. Extemporâneo, leu trabalhos científicos, estudos etnológicos e históricos, textos literários e escritos filosóficos. Póstumo, foi objeto das mais diversas apropriações políticas, literárias, artísticas e mesmo filosóficas. Com ele, dialogaram (e duelaram) Heidegger, a Escola de Frankfurt, Derrida, Foucault, Deleuze e tantos outros. Segundo Scarlett Marton, não há dúvida de que Nietzsche foi lido pelos seus pares. “Talvez não da maneira como queria, mas da maneira como ele também os leu. Pois, não foi enquanto historiador da filosofia que Nietzsche leu Pascal, Kant ou Espinoza. Não será enquanto tal que Deleuze, por exemplo, lerá Espinoza, Kant ou Nietzsche”.
Sobre a autora
Scarlett Marton é professora titular de Filosofia Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP). Formou-se em Filosofia pela USP; prosseguiu seus estudos na Sorbonne; defendeu o doutoramento e a livre-docência em Filosofia na USP; fez pós-doutorado na École Normale Supérieure de Paris. Publicou e organizou diversos livros sobre Nietzsche, além de artigos em diversos países. Fundou o GEN – Grupo de Estudos Nietzsche e é editora-responsável pelos Cadernos Nietzsche e da coleção de livros Sendas & Veredas.