Cordisburgo, a terra do Rosa
, Luiz Carlos Ramos, da Agência Brasil Que Lê, 25/11/2008

Minas Gerais é o estado brasileiro com maior número de municípios: dos 5.564 espalhados pelo País, 853 são mineiros. Cada cidade tem seus tesouros, seus orgulhos. Este é o caso de Cordisburgo, de apenas 9 mil habitantes, situada na região de Sete Lagoas, a 120 quilômetros de Belo Horizonte. A terra natal de João Guimarães Rosa, repleta de paisagens, recantos e costumes que remetem às obras do grande escritor, faz dos contadores de histórias uma atração à parte. Neste ano, com o centenário do autor de Grande Sertão: Veredas, a pequena cidade vive momentos especiais. Mas, seja qual for a época de uma visita a Cordisburgo, é impossível ser um turista apressado. Quem chega, tem vontade de ficar, ver, ouvir, participar.

Aconteceu algo assim com a jornalista Giovanna Tucci, que descobriu Cordisburgo no ano passado, ao fazer seu trabalho de conclusão de curso na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Esteve lá duas vezes. E ficou apaixonada, como relata: “Não é preciso andar muito por Cordisburgo para a gente notar a forte presença de Guimarães Rosa em tudo quanto é canto. ‘Ninguém espera a esperança, espera?’, diz o cartaz de uma loja. Tem o Bar Grande Sertão é Veredas, um boteco na rua principal, onde está o Museu Casa de Guimarães Rosa. Bastaram algumas voltas para eu perceber que passei a conhecer muito mais de Guimarães Rosa do que podia imaginar. Ou o Rosa, de mim.” Giovanna havia decidido fazer para a PUC um programa de rádio sobre os contadores de histórias de Cordisburgo, dos quais havia ouvido falar. Os contatos com as pessoas na cidade, na primeira viagem, mudaram seu rumo: “Meu trabalho acabou sendo sobre a pequenina terra sertaneja de Rosa e seus anjos. Sim. Brasinha, o mais conhecido contador, costuma explicar: ‘Os contadores são anjos, arautos que anunciam a chegada do escritor. Rosa está vivo!’ E percebi que ele tem toda a razão...”

Brasinha está aberto para receber cada visitante com um sorriso e com uma eterna disposição para contar histórias e falar de Guimarães Rosa. Ele é atração em Cordisburgo, mais que a impressionante e tão procurada Gruta do Maquiné, situada ali perto da cidadezinha. Brasinha faz gestos e conta: “Rosa está vivo, e vai chegando devagar, cada vez que alguém sente que o sertão é sozinho, o sertão é dentro da gente, o sertão é sem lugar.” Giovanna assume as teses de Brasinha e diz que sente vontade de ir de novo a Cordisburgo, nas férias: “Lá, a gente sente Rosa cada vez que um morador da cidade diz ‘meu primo tinha um amigo que era primo de Guimarães Rosa’; cada vez que um Miguilim respira fundo e começa a contar uma história. Cada vez, Rosa vive um bocadinho mais.”

José Osvaldo dos Santos, o Brasinha, de 52 anos, tem uma loja de roupas em Cordisburgo, mas sua maior paixão é o estudo de Guimarães Rosa. Para isso, ele seguiu os passos dos personagens Manuelzão, Juca Bananeira, Zito, Gregório, e sabe até que ponto existe ficção ou realidade. “Tento procurar o real dentro da ficção. E saio por aí, pelo campo, pelas montanhas, pelas veredas. Com isso, é mesmo possível sentir Rosa.” Guimarães Rosa está até no hino do município. Diz a letra: “Cordisburgo, teu cenário é o mais belo relicário... No ar, no mar ou na pena do Grande Rosa, nasce nas obras que a História consagrou.” Em 1883, o padre João de Santo Antônio chegou à região da Sesmaria Empoeiras e fundou um povoado, dando-lhe o nome de Coração de Jesus da Vista Alegre. Ele construiu a Capela ao Patriarca São José, conservada como um dos símbolos da cidade. Cordis, do latim, significa coração. Burg, do idioma alemão, é cidade: surgiu o nome Cordisburgo, Cidade do Coração, adotado no fim do século 19. O município foi criado em 1938, separando-se de Paraopeba. Nessa época, Guimarães Rosa tinha 30 anos.

O centenário de João Guimarães Rosa, que nasceu em 27 de junho de 1908, está sendo festejado em Cordisburgo durante todo o ano. Foi o primeiro dos seis filhos de Florualdo Pinto Rosa e Francisca Guimarães Rosa. Florualdo, o Fulo, era comerciante, juiz de paz, caçador de onças e contados de histórias. O garoto Joãozito iniciou os estudos em Cordisburgo, prosseguiu em Belo Horizonte e, mais tarde, em São João del Rei. Voltou para a capital mineira e, nas escolas, aprendeu francês, holandês, alemão, inglês, espanhol. Poderia ser um cidadão do mundo. E foi: Cordisburgo estava pequena demais para ele. Pequena, mas inesquecível, presente nas obras até na estréia nas letras, ocorrida em 1929, com quatro contos. Em 1930, aos 22 anos, casou-se com Lígia Cabral Penna, com quem teve duas filhas, Vilma e Agnes, e formou-se médico. Aquele casamento durou pouco. E, no fim dos anos 1930, morando na Europa, ele conheceu quem viria a ser sua segunda esposa, Aracy Moebius de Carvalho, Ara. A profissão também durou pouco: Rosa não tinha vocação para medicina.

Vitória da literatura e da diplomacia, novas atividades. Na literatura, prêmios. Na diplomacia, foi cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo, Alemanha, em plena 2ª Guerra Mundial e viveu momentos dramáticos ao tentar driblar o nazismo. No dia do centenário, 27 de junho deste ano, houve comemorações das 9 horas da manhã às 9 da noite em Cordisburgo – missa, abertura de exposição no museu de Rosa, exibição de orquestra na igreja, lançamento de livros, entre os quais uma biografia preparada por Vilma Guimarães Rosa Reeves, Vilminha, a filha mais velha do escritor: Relembramentos. Vilma conta que Grande Sertão: Veredas foi escrito em Paris: “Quando a gente morava na França, ele me disse que estava começando a escrever um livro. Mostrou-me uma das páginas e comentei que gostei muito. Então, explicou que a base de tudo aquilo era uma história que havia ouvido de seu pai.” Já Antonieta da Silva, de 84 anos, conta que conheceu Guimarães Rosa em 1952, época em que o escritor acompanhou alguns vaqueiros de uma boiada num trajeto de 250 quilômetros no sertão de Minas.

Essa viagem também contribuiu para inspirar Rosa para escrever Grande Sertão: Veredas. No sertão, vereda é uma espécie de oásis, uma área com vegetação e água. Lá, surgem palmeiras conhecidas como buritis, típicas do interior mineiro. A boiada de 56 anos atrás era conduzida de vereda em vereda, por mais de dez dias. Guimarães Rosa escreveu que as folhas das palmeiras eram tão verdes quanto os olhos de Diadorim. Uma das paradas foi na casa de Antonieta e do marido. Ela se lembra de ter servido jantar para Guimarães Rosa e os vaqueiros, cansados: “Eles chegaram, comeram, dormiram e seguiram.” O Guimarães Rosa garoto, dos tempos de Cordisburgo, foi relembrado num dos livros lançados neste ano na terra natal: é uma obra para crianças, com descrições do mundo dos animais. Uma definição do autor: “O macaco: homem desregulado. O homem: vice-versa; ou idem.”

O burrinho pedrês, primeiro personagem de Sagarana, não faz parte desse livro. Quem conhecia o burro era Juca Bananeira, pajem do menino Guimarães Rosa, a quem contava histórias que, mais tarde, o escritor adotou em obras. Juca foi carroceiro, boiadeiro. E, mesmo sendo analfabeto, tornou-se delegado. Virou personagem de Rosa. Morreu em 1998, aos 104 anos. Sua neta, Tânia Cristina Trambini, participou das festas dos 100 anos de Rosa. A psicóloga paulistana Célia Aidar Bondioli não esconde o entusiasmo ao falar sobre a viagem de estudos que fez a Cordisburgo, no ano passado, com um grupo do Laboratório de Estudos da Transicionalidade, da Universidade de São Paulo (USP). “Participei de uma Semana Roseana, com eventos musicais, percorrendo as várias cidadezinhas da região, cada uma com seu centro cultural. Muitos jovens, muito bonito”, lembra ela.

“Existem coisas típicas da região, como as bordadeiras, a festa da colheita da abóbora e, às 3 horas da tarde, a reza na igreja. Cordisburgo é toda empenhada em torno do escritor e das letras. Existe, por exemplo, a Academia Cordisburguense de Letras. Uma cidade tão pequena, e com uma academia!” Célia conta: “Com o professor Gilberto Safra, nosso grupo estudou Grande Sertão: Veredas e seus personagens, figuras da terra, sob a ótica da psicologia. Guimarães Rosa é um autor maravilhoso, rico para a língua portuguesa e para o estudo do ser humano.” Safra optou por, a partir da obra do psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971), elaborar uma síntese com idéias de filósofos contemporâneos e de outras épocas e de escritores como Fernando Pessoa, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Por meio de autores, é possível focalizar temas relativos ao ser humano, como a precariedade, a criatividade, a empatia, a religiosidade.

Essas situações aparecem nas páginas de Guimarães Rosa e são revividas nas ruas de Cordisburgo, nas narrativas dos contadores de histórias, na fala mineira de Brasinha e na idéia que, num dos 5.564 municípios do Brasil, existe um estilo único, o jeito roseano de ser. A casa e a presença do escritor - O Museu da Casa de Guimarães Rosa é o ponto alto para quem busca, em Cordisburgo, algo ligado ao autor de Grande Sertão: Veredas. A casa em que morou o escritor em seus tempos de garoto tem características simples e foi recentemente reformada. O telefone do museu é (31) 3715-1425. A Semana Roseana, geralmente em julho, atrai grande número de visitantes e as pousadas ficam lotadas, mas também é possível ficar hospedado em Sete Lagoas, uma cidade de 190 mil habitantes, a 44 quilômetros de Cordisburgo.

Os contadores de histórias, como Brasinha, estão sempre prontos para orientar os turistas e para falar de Guimarães Rosa, além de mostrar os locais em que surgiu inspiração para os livros. Os arredores de Cordisburgo e a Gruta do Maquiné ajudam a compor cenários de uma pacata Minas Gerais, típica de algumas obras de Rosa. Já não existem trens na região, mas a antiga estação ferroviária, que apareceu em contos pioneiros do escritor, continua preservada, como uma dupla relíquia: da literatura e de outra época dos transportes do Brasil, a época da Maria Fumaça.
[25/11/2008 01:00:00]