Cartas na mesa
PublishNews, João Morales, da revista Os meus livros, Portugal, 28/04/2009

Entrevista de Joaquim Soares da Costa à revista Os meus livros - #64 – ano 7 – junho/08

Apesar da editora ser nova, o homem que lhe dá um rosto tem dezenas de anos de experiência.

Para continuar o que fez nas Edições 70, inventou Texto & Grafia. Critica o afunilamento do gosto, a não ficção e reconhece que “a edição é um desafio constante”.

Depois de 37 anos ligado às edições 70, que fun­dou, resolveu vender a sua quota e sair. Por­ que essa decisão?

Ao fim de tantos anos de atividade tinham-se acumu­lado alguns vícios naquilo que era a vivacidade da pro­gramação da 70. Era necessário repô-la num lugar de uma média empresa editorial. Havia também situações no mercado do Brasil que me tinham aconselhado a esta aproximação. Depois, na prática, no trabalho quotidia­no, não se deu aquilo que é imperativo nestas circuns­tâncias, o sortilégio do diálogo. Esse, não existiu.

Eu queria uma 70 de acordo com as suas raízes, a sua tradição, o projeto que lhe deu substância e reputação em Portugal e nos mercados externos e, da outra parte, não houve uma afirmação de princípios e de objetivos.

Percebeu logo que não pretendia abandonar a edição?

Por um lado, era uma espécie de imperativo de consci­ência (até profissional), porque houve uma interrupção relativamente abrupta. A minha saída correspondeu a uma decepção. Tinha como razoavelmente certo que, com a entrada do novo sócio majoritário, poderia fazer com mais condições e maior facilidade aquilo que nos últimos 10 anos não tinha conseguido fazer. Portanto, senti que havia uma interrupção numa carreira que está longe de estar terminada e impôs-se-me a continuação. Tenho uma visão daquilo que é a edição e daquilo que me interessa que seja a edição a que estou ligado. Sempre segui aspectos de coerência e decidi proceder ao reco­meço da minha atividade.

E assim nasce a texto & grafia. Pelo que percebo é uma editora com uma opção exclusiva na não ficção...

Não posso dizer isso, como todo o edi­tor, a ficção interessa-me muito. Por um lado, entendo que não devo começar uma editora com projetos que estão afastados daquilo que são os meus propósitos de intervenção nos próximos dois ou três anos, por outro, a minha tradição, nas últimas três décadas, é no campo do ensaio. Além disso, creio que não há muito mais a fazer; a edição portuguesa é perita nesta desco­berta contínua das últimas novidades. O meu caminho natural será pelo ensaismo, mas não está de modo ne­nhum excluída a ideia de fazer coleções de ficção.

À partida, a editora vai ter três coleções. Fale-me um pouco sobre elas.

Começo pela Biblioteca Universal. Eu sempre fui prati­cante de uma concepção de edição que consiste em arru­mar o saber por categorias, daí que, na 70, eu tivesse de­zenas de coleções dedicadas à filosofia, à antropologia, à história, à arte...

Aqui, pareceu-me que devia reunir numa única coleção aquilo que se fosse selecionando em várias áreas das ciências sociais e humanas. Sobretudo nesta fase, penso que o ensaio que nós devemos propor deve ser um en­saio divulgativo - porque a minha vida tem também a vertente do ensaio acadêmico. Mas a minha atitude hoje é outra, pretendo oferecer obras de reflexão e de cultura a um público mais vasto.

Outra coleção chama-se Mimésis, começou com "O Cinema e a Encenação", de Jacques Aumont, e pre­tende abranger as artes do espetáculo, embora com pre­dominância para o cinema e teatro.

A terceira coleção assenta em dicionários, prontuários e enciclopédias...

A intenção é criar uma coleção para um público mais vasto do que é habitual. As obras devem ter um objetivo, serem de indiscutível qualidade e que preencham espaços. Começamos por uma obra publicada pela Larousse, um dicionário comentado de expres­sões latinas. As expressões em si pode­riam ter pouco interesse, a diferença está nos comentários do autor, que têm aspectos de uma certa erudição, mas são divertidos.

Vão ser produtos originais ou traduções de edi­ções estrangeiras?

Serão dicionários temáticos. Há poucos autores dispo­níveis, seja qual for a matéria de que se queira falar. Mas quero convidar autores portugueses para participar nesses projetos.

Dicionários ou enciclopédias são obras de um certo peso, que implicam muitas vezes uma equi­pa, uma determinada estrutura...

Estamos trabalhar com uma equipa de três pessoas, naturalmente recorrendo a muita colaboração externa. Temos um Conselho Editorial que funciona na base de contactos assíduos e regulares mas, nesta fase, seria pre­tensão a mais, seria começar pelo fim.

Quem é que escolhe os livros que editam?

Tenho sido eu... não quereria comprometer-me com isso porque a minha ideia é criar um núcleo de trabalho e de responsabilidades. Não tenho ninguém em mente, mas estou acompanhado há mais de 30 anos pelo meu amigo, Professor Artur Mourão, que é uma personali­dade de destaque na área das Ciências Humanas.

Vai integrar no seu catálogo títulos antigos das edições 70?

Grande parte do trabalho feito na 70 está bem feito, por isso não me parece que seja útil ir recuperar um catálo­go que até tem bastantes títulos... há muita coisa para fazer nesta área da cultura.

Há pouco referiu o brasil. Vão distribuir lá os vossos livros?

Sim, aliás, está já garantido um contrato de distribui­ção. Estando nesta atividade, é para mim muito óbvio que é necessário considerá-lo um prolongamento, um mercado natural, como é o de Angola. No meu caso, isso corresponde a uma ação que sempre desenvolvi. Organizei, em Junho de 1974, a presença dos editores portugueses no Brasil, o que foi uma enormíssima festa. O Brasil é um mercado essencial.

Qual é a sua opinião sobre a ratificação do acor­do ortográfico.

Penso que o Acordo Ortográfico não era preciso. Eu nunca senti no meu relacionamento com o Brasil - a 70 teve lá uma casa, de 1988 a 1994 - que o português, tal como ele se fala e escreve lá, fosse uma barreira. Os governos têm ido atrás destas premissas, não sei muito bem porquê. Se procurarmos uma explicação, ela está talvez na História, naquilo que era um certo predo­mínio de Portugal sobre o Brasil. Nos anos 50, parte do livro escolar que se lia no Brasil era feita em Portugal, o que explica, talvez, uma parte deste processo.

A texto & grafia começa a sua atividade num ano de muitas mudanças no sector. Como é que vê todas as compras e vendas que têm vindo a ocorrer nos últimos meses?

Com expectativa. Numa perspectiva estrita­mente profissional, a concentração pode trazer vantagens, grupos fortes, organizados, com influência na economia da edição que possam contribuir para aquilo a que chamo - com algum risco, é verdade - disciplina do mercado. Há muitas editoras em Portugal, há excessos de produção.

Gostaria de integrar uma estrutura maior?

No fundo, evitei entrar numa. É claro que não ex­cluo aspectos de colaboração, sinergias... mas en­trar num grupo grande... penso que seria o meu último desejo.

Com quase quatro décadas na edição, quais são as grandes diferenças que encontra nos leitores portugueses?

Parece-me que há um afunilamento do interesse pela leitura em Portugal. Se os índices de leitura são apreciados em função da quantidade - como eu penso que são - e não da variedade, que pressupõe qualidade, com certeza que estamos pior do que se pensa. Hoje, lê-se menos, em variedade, do que há 30 anos. Há muitas editoras a fazerem muitas coisas parecidas entre si.

Diz-se que os portugueses pouco lêem mas não param de surgir editoras novas. Como comenta este aparente paradoxo?

A criação de uma editora não deve ser um ato de impulso ou de capricho - é um ato de risco, de aposta, de filosofia e de prática. Mas para fazer livros é preciso meios financeiros, ter um projeto, um pro­grama, ter ideia do que se vai fazer, conseguir chegar lá, e depois... distribuí-los. E neste percurso, pagar a quem os produz. Não gostaria me alongar porque é, de fato, um fenômeno em que há qualquer coisa de artificial. É certo que se podem identificar editoras que fizeram livros que venderam bastante, continu­am a vender, e algumas delas têm já um catálogo que pode garantir uma certa normalidade de funciona­mento com autonomia e independência. Mas, numa outra parte desse impulso, não vejo essa solidez.

Em todos estes anos de edição já lançou algum livro do qual se arrependeu?

Poderia dizer que sim, quando o livro não vende e nele se depositam expectativas... mas em termos de lamentar, realmente, não me recordo. Sempre fiz os livros na altura certa, aqueles que me interessaram publicar. Todos valeram a pena, até porque nos en­sinaram a pensar melhor aquilo que é o destino do livro. A edição é isso, um desafio constante.

[28/04/2009 00:00:00]