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O leitor que trabalha em editora
PublishNews, 03/05/2011
O leitor que trabalha em editora

Por todo esse tempo em que venho trabalhando no editorial, já tive várias relações com os livros e a leitura. Eu já passei de um respeito profundo a quase nojo. Agora estou numa fase que se crê “clarividente”, que é divertida de contar, mas insuportável de viver.

O respeito profundo veio da Letras, que é uma faculdade que me fez acreditar que o livro é sempre totalmente escrito pelo autor que tem o nome na capa. Eu lia cada palavra com devoção, pensando na incrível capacidade do autor de escolher as palavras certas. Atualmente, chego a achar engraçado alguém pensar isso, porque é possível que a palavra que eu tanto admirei tenha sido escolhida pela tia do primo do namorado da revisora, ou algo que o valha. Mas, sim, há autores que ou escrevem muito perfeitamente bem, ou que não permitem modificações em seu texto, mas não são todos.

Há aqueles que permitem, apoiam e agradecem grandes quantidades de alterações feitas pelo copidesque, revisor técnico, revisores tipográficos, assistentes editoriais, editores etc. E toda essa gente, antes de alterar o texto, costuma perguntar para alguém de sua confiança o que acha da tal alteração. Sendo assim, dá para imaginar que a coisa mais improvável seja encontrar em um livro uma palavra escrita pelo autor que tem o nome na capa. Não, não chega a tanto, principalmente em ficção nacional, que costuma sofrer poucas alterações, mas é um dado interessante que acho que deveria ser levado em conta pelos estudiosos de autores contemporâneos...

O mesmo vale para tradutores. Há livros que, se alguém comparar o arquivo da tradução com o livro vendido, vai ver que são praticamente dois livros diferentes. E, apesar de conhecer tradutores sérios e bons, agradeço todo dia ao Deus Editorial pela existência dos copidesques, editores ou assistentes editoriais que refazem o trabalho do falso tradutor (como há falsos médicos, falsos dentistas...) por 1/5 do valor que este recebeu ou até mesmo de graça. Simplesmente porque acreditam piamente que os livros, todos eles, devem estar “perfeitos”.

(Prezadíssimos leitores, aqui faço questão de alertá-los de que vocês têm muitos e apaixonados defensores dentro das editoras. Apesar de vocês parecerem duvidar às vezes...)

Foi nesse momento, no da busca do livro perfeito, que comecei a desenvolver um intenso asco por livros ou pela indústria editorial ou pela indústria cultural ou pelo pensamento industrial etc. Isso aconteceu e acontece basicamente porque os livros, simplesmente, não saem perfeitos. Em uma editora, você tem limitações de prazo e custo e, como sempre, essas limitações também limitam a qualidade. “Mas, se os livros não têm que sair perfeitos, por que eles precisam passar por toda a cadeia de produção? Por que não imprimem direto em gráfica o arquivo enviado pelo autor? Por que vale a pena trabalhar com livros e não com qualquer outro produto? Por sinal, vale mesmo a pena?”

Essas perguntas podem ficar na sua cabeça pra sempre ou você pode respondê-las mudando de profissão, decidindo que mesmo o pior livro enriquece mais sua vida do que trabalhar produzindo qualquer outra coisa... Coincidência ou não, nessa fase de crise comecei a pegar milhares de frilas e não me sobrava tempo nenhum para ler por prazer, talvez um pouco para ter a sensação de que estava salvando o mundo e talvez um pouco para estabelecer com a leitura exclusivamente um vínculo profissional, cheio de mágoas. Já ouvi e disse muito: “Só leio se me pagarem pra isso”...

Meu momento atual é o de voltar a ler por prazer, mas ainda com sequelas dos meus trabalhos com textos alheios. Mas quando começo a ler, leio como um detetive, tentando descobrir as palavras que foram alteradas, qual foi a justificativa para a alteração, se o livro foi feito às pressas, como pautaram a capa, por que escolheram aquela fonte, aquele espaçamento entre as linhas e aquele número de páginas, qual a faixa etária e a experiência de quem escreveu a orelha e baseado em quê. Se for tradução, fica uma voice in my head lendo todo o livro em inglês pra entender as opções feitas e, por que não?, os erros óbvios. Por sinal, adoro achar erro no livro dos coleguinhas – por isso dificilmente consigo ler um livro no qual trabalhei: eu sei que vou achar erro –, confiro se o ISBN da capa bate com o da ficha catalográfica, vejo se foi passada a medida certa da lombada pro capista, estipulo se atrasou, por que escolheram aquela data para o lançamento etc. Por isso que chamo de fase da clarividência, porque é só tocar em um livro que sei toda a história da produção dele. E isso não é uma “macumba” só minha, não. Qualquer um com certo tempo de trabalho em departamentos editoriais ou um “leitor profissional” sabe a mesma coisa. Para nós, o livro conta no mínimo duas histórias: a que o autor escreveu e a que a editora reescreveu. Por isso, apesar de agora ao menos ter vontade de ler, raramente consigo terminar a história do autor. Deve ser o próximo passo no caminho da libertação da leitura...

Cindy Leopoldo é graduada em Letras pela UFRJ e pós-graduada em Gerenciamento de Projetos pela UFF. Em 2015, cursou o Yale Publishing Course e, em 2020, iniciou a especialização em Negócios Digitais, da Unicamp. Trabalha em editoras há uns 15 anos. Na Intrínseca, onde trabalhou por 7 anos, foi criadora e gerente do departamento de edições digitais e editora de livros nacionais. Atualmente, é editora de livros digitais da Globo Livros.

Escreve quinzenalmente, só que não, para o PublishNews. Sua coluna trata de mercado editorial, livros e leituras.

Acesse aqui o LinkedIn da Cindy.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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