Eu sei que não enxergo muito bem. Além disso, às vezes fico vesga e sinto que imagens se juntam. Se tiro os óculos, é tudo meio borrado, posso inclusive não ver movimentos. Mesmo assim, se uso um grupo de palavras em uma determinada ordem, é possível que eu te faça ver o que estou vendo e vice-versa. Ou até opinar sobre detalhes do que não estou vendo. E o entendimento realmente parece acontecer a partir do momento que encapamos a realidade em signos.
Sinceramente, acho a comunicação inviável. Como também acho um avião voar ou um navio flutuar. É o tipo de milagre que acontece milhares de vezes por dia e não há explicação que baste. Só acontece porque está acontecendo já que, na verdade, pode não acontecer. Mas, se você ouvir bem o que se dá pelas esquinas do mundo, vai ver que não são bem as palavras e a ordem em que são colocadas. Há um tom de voz, um sentimento, um olhar, um emoji que seja, que faz as letras se juntarem ou se perderem de vez.
Acho que foi na primeira página de A ilíada, em português, que eu senti que tinha perdido minha capacidade de entender a língua escrita:
"Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta, que causou inumeráveis dores aos aqueus e precipitou no Hades almas de heróis sem conta, jogando seus corpos como pasto para cães e pássaros carniceiros: cumpria-se a vontade de Zeus, desde a contenda que separou o Atrida, rei de guerreiros, e o divino Aquiles".
Quando li isso na faculdade senti que jamais sairia daquela página. Mas quando me falaram do que se tratava, eu nunca mais consegui desentender. Era tão claro! Por outro lado, quando minha mãe fala algo do tipo “é, mas aí, né, é aquele de deixar de... porque não tem, né? É de quando, né? Por favor...” eu entendo, sei lá como, que ela está falando da venda da nossa casa, por exemplo.
Entender tem mais uma questão de afeto do que de visão ou audição. Como se entende isso? Talvez o afeto seja o que eu chamo de Dorflex. Algo que relaxa, descontrai e acaba com a dor. Mas essa explicação só vai ser compreensível para quem sentiu, não para quem leu minha explicação.
Entender é um tipo de memória? Onde li isso?
Na linguagem dos sonhos é muito mais fácil saber quem amamos, quem não achamos confiável, talvez seja a linguagem mais fácil para entender e a mais difícil de explicar. Nos sonhos, mesmo a morte e os mortos parecem estar sempre por ali, mas são completamente inviáveis na nossa realidade. Tão inviáveis que poderiam até destrui-la. A morte com certeza também é um milagre, ainda que seja o buraco negro da comunicação (para não médiuns), ela é a coisa mais presente, das que queremos acreditar que não existem.
Volto a dizer que não há nada mais improvável do que entender alguma coisa, mas, mais uma vez, espero que o milagre da junção das letras certas na ordem certa aconteça e o significado dessa confusão que escrevi se resolva aí atrás dos seus olhos. Dos meus também.
Obs.: Tô tentando entender Ulysses.
Cindy Leopoldo é graduada em Letras pela UFRJ e pós-graduada em Gerenciamento de Projetos pela UFF. Em 2015, cursou o Yale Publishing Course e, em 2020, iniciou a especialização em Negócios Digitais, da Unicamp. Trabalha em editoras há uns 15 anos. Na Intrínseca, onde trabalhou por 7 anos, foi criadora e gerente do departamento de edições digitais e editora de livros nacionais. Atualmente, é editora de livros digitais da Globo Livros.
Escreve quinzenalmente, só que não, para o PublishNews. Sua coluna trata de mercado editorial, livros e leituras.
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** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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