Esse anacronismo cria situações contraditórias, como editoras querendo atingir em 2020 as mesmas metas da Google, mas usando ferramentas de 1911, que obviamente não dão conta das demandas. Além disso, nos permite imaginar o futuro da antieditora, que é a empresa que recebe um bom livro do autor ou do agente e o transforma em um livro ruim. Isso pode acontecer, por exemplo, quando se recebe o original, manda correndo para um tradutor que ainda não foi testado, porque todos os bons e conhecidos estão ocupados; depois recebe uma tradução horrível que parece feita pelo Google Translator; daí manda para um copy, que também não foi testado, mas que, espera-se, consertará tudo (apesar de ele não ler alemão, língua do original), porque o copi bom vai precisar de mais prazo do que você pode oferecer. Então, você, assistente, coordenador ou editor, a cada vez que a prova chega do “inimigo”, tem por missão salvar o livro de todos os erros que foram inseridos, recolocar as vírgulas retiradas, restabelecer as concordâncias e aí mandar para o birô que trabalha rápido. Infelizmente você só vai descobrir que a revisão não percebeu o capítulo inteiro que deixou de ser editorado no momento em que a indexação estava sendo feita por uma estagiária atenciosa, que além de descobrir isso, percebeu que muitas partes do livro também não foram traduzidas. E assim o livro precisará ter a data de publicação alterada, porque um outro tradutor topou consertar o trabalho já na prova editorada (para “agilizar”). E essa será a prova que depois seguirá para um copy “dar apenas uma olhada”. Então isso vai fazer o texto andar e fará o diagramador cobrar por uma nova editoração. Assim você tem um livro ruim, remendado por pessoas diferentes, com vocabulários diferentes e que saiu bem mais caro do que deveria. Essa é a antieditora padrão, e toda editora pode ser uma antieditora às vezes, mas a ideia é aprender com o erro e evitar isso ao máximo.
Aí vem outro problema citado em um dos e-mails que recebi: a quase completa falta de documentação do trabalho. É praticamente inexistente o treinamento em ferramentas de controle da imensa quantidade de informação com as quais trabalhamos. Não temos um banco de dados de lições aprendidas, ao menos não um que eu já tenha ouvido falar. Cada um que faz um livro, o faz baseado em sua memória pessoal – e, se der sorte, com a experiência de alguém próximo. Não é que as ferramentas não existam no mercado (e mesmo que não existam, grande parte das empresas desenvolvedoras de softwares são especializadas em desenvolver produtos customizados); imagino que o pensamento seja “nunca foi necessário esse tipo de coisa, por que seria necessário agora esse altíssimo investimento?”.
Essa confusão faz com que aqueles funcionários mais antigos não reconheçam mais sua função e seu local de trabalho e cria um imenso gap entre o que é estudado pelas novas gerações nas faculdades de produção editorial e o que é exigido em seus estágios. Parece claro que a transição 1911-2011 não foi detalhadamente planejada, mas agora que o forte impacto no pessoal resultou em alta rotatividade, aumento do absenteísmo, desmotivação, talvez seja hora de dar o passo além do taylorismo e chamar seus departamentos de produção para conversar e pensar juntos (com os números da lista de mais vendidos do PublishNews em mente) até onde aumentar a produção realmente está se convertendo em lucro.
Cindy Leopoldo é graduada em Letras pela UFRJ e pós-graduada em Gerenciamento de Projetos pela UFF. Em 2015, cursou o Yale Publishing Course e, em 2020, iniciou a especialização em Negócios Digitais, da Unicamp. Trabalha em editoras há uns 15 anos. Na Intrínseca, onde trabalhou por 7 anos, foi criadora e gerente do departamento de edições digitais e editora de livros nacionais. Atualmente, é editora de livros digitais da Globo Livros.
Escreve quinzenalmente, só que não, para o PublishNews. Sua coluna trata de mercado editorial, livros e leituras.
Acesse aqui o LinkedIn da Cindy.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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