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As eternas aventuras da boneca Emília contra o horror da guerra
PublishNews, Roney Cytrynowicz, 30/11/2016
Em sua coluna, Roney Cytrynowicz pega carona no relançamento de 'A chave do tamanho', de Monteiro Lobato, pelo selo Globinho, para fazer uma reflexão do mundo atual

Nova edição de 'A chave do tamanho' chega às livrarias com ilustrações de Guazzelli
Nova edição de 'A chave do tamanho' chega às livrarias com ilustrações de Guazzelli
Reeditando a obra de Monteiro Lobato, a Globinho (Globo Livros) acaba de lançar A chave do tamanho. Publicado originalmente em 1942, este livro é um clássico da literatura infantojuvenil brasileira, que exibe em sua melhor forma a narrativa de Monteiro Lobato, sua capacidade imaginativa, suas tiradas e sacadas com a língua, seus recursos literários e, igualmente, a proposta de introduzir os pequenos leitores no contexto político, no caso a Segunda Guerra Mundial em pleno curso.

As aventuras de Emília, do Visconde e demais habitantes do Sítio, e especialmente os diálogos, saborosos, filosóficos, engraçados, são memoráveis. Este livro, a exemplo do conjunto da obra infantojuvenil de Lobato, permanece plenamente vivo nos dias atuais.

Monteiro Lobato estava há tempo merecendo uma reedição caprichada e esta nova coleção tem ilustrações de Guazzelli. A importância de Lobato justificaria, aliás, edições para diferentes categorias de leitores, inclusive adultos que poderiam apreciar uma edição histórica, com fac-símiles de capas anteriores e de ilustradores e assim por diante. Quem sabe até uma edição crítica. Está mais do que na hora de Monteiro Lobato receber o tratamento de clássico da literatura brasileira no século 20.

Logo no início de A chave do tamanho, um diálogo entre Dona Benta e Narizinho esclarece aos pequenos leitores por quê escrever sobre a guerra, após Pedrinho ler no jornal sobre os bombardeios de Londres, “um colosso de bombas. Quarteirões inteiros destruídos. Inúmeros incêndios. Mortos à beça”:

O rosto de dona Benta sombreou. Sempre que punha o pensamento na guerra ficava tão triste que Narizinho corria a sentar-se em seu colo para animá-la.

– Não fique assim, vovó. A coisa foi em Londres, muito longe daqui.

– Não há tal, minha filha. A humanidade forma um corpo só. Cada país é um membro desse corpo, como cada dedo, cada unha, cada mão, cada braço ou perna que faz parte do nosso corpo. Uma bomba que cai numa casa de Londres e mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha, como você, ou deixa aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto como se caísse aqui. É uma perversidade tão monstruosa, isso de bombardear inocentes, que tenho medo de não suportar por muito tempo o horror desta guerra.

O enredo é conhecido. Decidida a interromper a guerra, Emília toma uma dose do superpó de pirlimpimpim e viaja à Casa das Chaves, no Fim-do-Mundo, que aciona os controles do mundo. Ali, ao invés de desligar a chave da guerra, desliga por engano a do tamanho. Assim, a impotência dos pequenos diante da guerra imposta pelos adultos é superada em uma genial e politizada diabrite literária que põe a humanidade de ponta cabeça.

Todos devem estar transtornados, filosofa Emília, após reduzir o tamanho, mas pelo menos a guerra acabou: “pequeninos como eu, os homens não podem mais matar-se uns aos outros, nem lidar com aquelas terríveis armas de aço. O mais que poderão fazer é cutucar-se com alfinetes ou espinhos”. O título original do livro incluía o subtítulo “A maior reinação do mundo”.

Daí em diante, diminuídos a poucos centímetros, as peripécias da turma do Sítio são engraçadas, curiosas, imaginativas. Após várias aventuras (e reflexões sobre a natureza, a ciência, o progresso, a civilização) com insetos, animais e plantas, Emília viaja em um sítio arrumado dentro da cartola do Visconde de Sabugosa, com chaminé, assoalho, cerca e escadinha da aba até a porta!

A chave do tamanho se distancia de narrativas que heroicizam a guerra, ainda mais no período do Estado Novo, que poderia induzir ao patriotismo (Lobato era opositor de Vargas e esteve preso). Lobato tem lado, o dos Aliados (quando o livro foi publicado, Vargas apenas iniciava o alinhamento aos Aliados), mas não torna jamais as crianças soldadinhos a serviço do que quer que seja.

Se o livro mostra, no geral, uma clara decepção do escritor com a sociedade e o progresso (com críticas de vários matizes ideológicos), mantém espaços de sobra para perguntas e dúvidas, sem respostas prontas para as crianças. A narrativa dá conta disso por meio de uma linguagem reflexiva e cheia de indagações e brincadeiras com a própria literatura, a língua e o sentido das palavras. Mesmo quando estamos diante de ideias com as quais não concordamos como leitores, a literatura dá conta do contraditório e ainda o faz com ironia.

Um diálogo na fazenda do Coronel Teodorico, que achava que tudo tinha ficado enorme e estava preocupado com seu dinheiro, mostra bem o complexo e engraçado recurso à imaginação e proposta de reflexão para os pequenos leitores:

– Mas como poderemos viver sem dinheiro? – disse ele. – Enquanto houver homens no mundo, haverá dinheiro.

Emília teve dó daquela burrice. Mostrou que o dinheiro era uma das muitas consequências do tamanho, como tudo o mais que os homens chamavam civilização. Desaparecendo o tamanho, desaparecia o dinheiro e toda a velha civilização. Alegou que mesmo no mundo antigo muita gente já vivia sem dinheiro, como, por exemplo, o Visconde de Sabugosa, que nunca possuiu um tostão furado. Também os insetos viviam perfeitamente sem dinheiro.

Mas nós não somos insetos – protestou o Coronel ainda cheio de orgulho do tempo em que tinha um metro e oitenta de altura.

Somos menos que isso, Coronel. Os insetos possuem três pares de pernas e nós, só um par. E muitos têm asas com que voam e nós em matéria de asas só temos as asas do nariz, que não voam. E ainda possuem antenas, que são órgãos do tacto, algumas delas dotadas de ouvidos – para apalpar e ouvir ao mesmo tempo, coisa aperfeiçoadíssima.

No interessante artigo A Chave do mundo: o tamanho, Thiago Alves Valente escreve que neste livro, um dos últimos escritos por Monteiro Lobato, a ciência e a política se transformam em temas cotidianos no Sítio do Pica Pau Amarelo. A fantasia e a aventura partem da realidade, a guerra, criando um jogo de contradições, inversões de perspectiva e relatividades entre pequeno e grande, ser humano e natureza, real e imaginário e assim por diante, o que torna a narrativa elaborada e atraente. Valente mostra o domínio doas recursos literários com os quais Lobato trabalha para encantar as crianças e provocar seu interesse pelas coisas do mundo. Mostra também que Monteiro Lobato introduziu mudanças (eliminando três capítulos) na edição das Obras Completas em 1947 (o artigo está em Monteiro Lobato. Livro a Livro. Obra Infantil, organizado por Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini, Ed. Unesp).

Entre as muitas passagens geniais do livro está a visita do Visconde e da frau Emília, Marquesa von Rabicó, à Alemanha nazista. Ao apresentar o Visconde ao grande ditador, Emília se dirige ao agora minúsculo homem de bigodinho com uma ironia cortante:

– Não se assuste, Excelência. O Visconde é o maior gigante do mundo, mas também é milho – um vegetal extremamente pacato. Além disso é um grande sábio – hoje o maior sábio do mundo. E não é judeu, não, Excelência. Não tenha medo. O Visconde é arianíssimo. Quando esteve no milharal que foi o seu berço, o vento dava na sua linda cabeleira louro-platina. Hoje está velho e careca e anda sempre com o meu sítio na cabeça.

Von Rabicó revela ao minúsculo ditador que sabe quem acabou com o Tamanho e esta pessoa é a única que pode restituir o Tamanho, “aquele tamanho malvado, porque se não fosse ele os homens não teriam sido maus como foram, fazedores de guerras, incendiadores de cidades, afundadores de navios, judiadores de judeus”.

Mas esse misterioso alguém, alerta Emília, só restaurará o tamanho perdido se tiver a certeza de que “Vossa Excelência vai fazer a paz, e botar fora todas as horrendas armas que andou amontoando, e desse momento em diante viverá na mesma paz e harmonia com o mundo em que vivem as formigas e abelhas”.

E a boneca ainda ameaça: se voltar o Tamanho e a paz não voltar, reduzirá o Tamanho não a quatro centímetros, mas a zero, ficando os homens sujeitos a serem comida de pulga!

Em outra escala da antológica viagem, Emília morando na cartola do Visconde, a dupla chega à Cidade do Balde, na Califórnia, onde um grupo de minúsculos criava uma nova experiência civilizatória liderada por um antropólogo. Após deixar o Balde, discutindo o que seria do homem neste estado, Emília filosofa e encontra uma solução genial:

– Mas a ciência vai levar a breca, porque a ciência está nos livros e os livros já não podem ser usados – observou Emília. – Pedrinho fez a experiência lá na cômoda. Leu dois ou três períodos dum livro e cansou.

– Para tudo haverá jeitos. Antes de existirem os livros já existia cultura. Temos as nossas cabeças, e dentro delas está a memória. Iremos transmitindo a ciência de uma cabeça para outra. E muita coisa poderemos escrever em palhinhas ou pétalas secas.

– Papirinhos!

– Sim – e mandou buscar lá dentro o seu livro de notas. – Aqui tem, disse ele mostrando um caderno de dez folhas de pétalas de rosa. Cortei as pétalas em retângulos e deixei-as ao sol prensadas entre dois pedacinhos de vidro aí no chão. Secaram sem enrugar.

– E para escrever?

– Usei um finíssimo espinho de figo de Berbéria. A tinta foi o caldo duma frutinha preta muito abundante por aqui.

Emília admirou aquele livro de pétalas de rosa, que talvez fosse o livro número um da nova humanidade.

Em outro trecho, ao ver o esforço do Visconde em ler um livro gigante, andando como caranguejo embaixo de cada linha, lendo letra por letra, Dona Benta diz:

– Estou vendo que toda a cultura humana, guardada nas bibliotecas, está perdida. Tirar os livros das estantes já vai ser quase impossível. Abri-los é um trabalho e lê-los, letra por letra, caminhando de pé por baixo das linhas, é esforço lento e fatigante. Será uma verdadeira façanha de Hércules ler um livro todo.

Pois não é que o comentário filosófico de Dona Benta, de 1942, faz sentido hoje mesmo sem estarmos reduzidos à condição de “insetos descascados” de alguns centímetros de altura? Aliás, se dependesse da Emília, já tínhamos virado comida de pulga, e com toda razão. Aliás ainda, bem que Emília poderia empreender mais uma travessura e desta vez abaixar outra chave, talvez duas: a que nos condenou ao mundo digital – no qual “será uma verdadeira façanha de Hércules ler um livro todo” – e a do “post-truth” (pós-verdade), de consequências ainda desconhecidas. Nessas horas, como Emília, só mesmo se refugiando na cartola do Visconde de Sabugosa rumo à civilização do balde, já que, de certa forma, fomos reduzidos a condição de seres “digitais descascados”.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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