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Autores 2.0 procuram editores 2.0
PublishNews, 22/03/2012
Autores 2.0 procuram editores 2.0

Dos dias de Dickens até hoje, grandes esperanças de uma nova relação entre autores e editores

No século 19, Charles Dickens era o escritor mais popular do mundo, escrevendo sobre meninos que sofriam a brutalidade da Revolução Industrial, quando o poder do dinheiro atropelava o direito das pessoas. Isso fica patente tanto em histórias como Oliver Twist quanto na própria biografia do autor, que testemunhou a turbulenta transformação do livro em mercadoria, do editor em manufatureiro e do escritor em profissional.

Em 1842, Dickens visitou os Estados Unidos, onde foi tratado como um pop star, bajulado em banquetes e assediado nas ruas. Em meio ao confete, Dickens tentava encaixar uma questão séria: embora fosse de longe o escritor mais lido naquele país, ele não recebia nem um shilling, já que editoras e gráficas americanas, amparadas na falta de uma legislação internacional, tomavam a obra para si (e emendavam como queriam as páginas dos folhetins, criando suas versões de David Copperfield). O autor não tinha direito nem sobre a integridade da obra nem sobre a receita que esta gerava. E quando, polidamente, tocou no assunto, a resposta dos americanos foi nada capitalista: “Estamos mortificados e entristecidos pelo fato de ele ter praticado tamanha indelicadeza e impropriedade. Toda a imprensa do país estava pronta para fazer sua louvação, mas ele insistiu junto aos presentes para que não apenas fizessem honra ao seu gênio, mas também para que se preocupassem com sua bolsa”.

Foi outro megabest-seller de seu tempo, Victor Hugo, quem tomou a frente das reivindicações dos autores por uma legislação internacional, que culminaram com a Convenção de Berna (1886), onde estabeleceu-se o grande acordo entre autores e editores, a base jurídica daquele “©” singelo na página de créditos dos livros de hoje. No toma-lá-da-cá entre escritores e impressores, foram os últimos que se saíram melhor. Enquanto os autores conseguiam o reconhecimento (direito moral), as editoras-impressores garantiam para si a exclusividade para exploração comercial. Assim, o instituto criado na Convenção de Berna não foi o droit d’auteur, como queria Hugo, mas sim o copyright, o “direito (da editora) de tirar cópias”.

Os acordos de Berna, regendo as relações entre escritores e editoras, foram se sofisticando ao longo dos anos, mas ainda podem ser resumidos ao “dez-por-cento-pra-você-exclusividade-para-mim”. Muitos autores parecem satisfeitos com isso e encaram com desconfiança as “novidades” trazidas pelo digital. Entre os ressabiados estão Scott Turrow, Johnathan Franzen e Bernardo Carvalho. Para o autor de O filho da mãe, a situação de conflito entre o direito de autor e as demandas da internet é “de fato e irreversível” e o copyright é cada vez mais “tradicional, restritivo e insustentável”. Porém isso não acontecerá sem esvaziar o papel do autor e da obra de arte, transformando o primeiro em um “negociante de direitos intelectuais segundo a lógica de uma empresa de mídia”, obrigado a “tornar-se cada vez mais público”. E lamenta: “o artista passou a ser proprietário da ideia”.

Outros escritores estão justamente celebrando a recém-conquistada propriedade de suas ideias. Tome-se o exemplo de Hernán Casciari (aqui na palestra “Como matar o intermediário”, i.e, o editor), um argentino expatriado em um pueblo catalão, de onde criou o blog Orsai (jargão do fútbol para “lateral”, nome escolhido porque ele se sentia “posto de lado, fora do jogo”). Quando o blog atingiu uma grande popularidade, ele foi convidado a fazer um “upgrade” para o livro impresso. Tudo ia muito bem até que ele se deu conta de que, ao confinar seu texto ao papel e sacrificar a exclusividade para um punhado de editoras, ele havia perdido leitores, havia aberto mão do diálogo com seu público e, sobretudo, deixava de ganhar dinheiro. Hoje a Orsai é uma editora 2.0, onde o(s) autor(es) falam direto com o público. O próximo número da revista, por exemplo, já foi pré-vendida, sem “intermediários”, a quase cinco mil subscritores.

Casciari e muitos escritores de hoje (incluindo talvez a mais lida de todos, J.K. Rowling) têm das editoras tradicionais uma opinião não muito diferente da de Dickens sobre os impressores da época: “bloody parasites”. Alguns deles decretaram simplesmente a obsolescência da figura da editora, a ponto de levar uma instituição tradicional, como a Hachette, a assinar um documento defendendo as “utilidades” da edição tradicional.

Talvez a questão seja apenas de descompasso. Assim como a literatura popular de Dickens e Hugo não dispunha de uma contrapartida institucional organizada na indústria editorial de seu tempo, talvez os editores do século 20, baseados ainda na premissa manufatureira-mercantilista da Revolução Industrial, ainda não estejam “na mesma página” de escritores do século 21.

Um observador de fora, como Silvio Meira, do Porto Digital, intuiu que a editora 2.0 terá de exercer funções múltiplas “antes distribuídas em vários nichos do mercado” e que eles deverão ser “ao mesmo tempo editores, codificadores (a ‘nova’ gráfica), distribuidores, livrarias, bibliotecas… uma fusão de papéis que é parte da confusão no novo mercado literário”. Embora o papel do editor 2.0 ainda não esteja claro, há editores tradicionais que estão “saindo da caixa” e fazendo experiências, como Ivan R. Dee, da Now and Then, que reduziu sua empresa ao que mais importa — trabalhar com o autor para chegar ao melhor texto possível — e por isso foi acusado de “mascate de lixo eletrônico” por alguns de seus pares do Ancient Régime Éditorial.

Em artigo no Guardian, Henry Porter rebate o catastrofismo de Johnatan Franzen em relação ao livro digital, comparando a atitude do americano à postura de um grande escritor do século 19 — ele mesmo, Charles Dickens.

“Nos últimos anos de sua vida, Charles Dickens caiu na estrada para cumprir uma extenuante agenda de leituras públicas, que certamente apressaram sua morte […] Ele se arrastou de auditório em auditório, sozinho exceto pelos personagens que carregava na mente: alquebrado, mal alimentado e mortalmente exausto, mas com uma urgente necessidade de se comunicar com seus leitores. Essas leituras, precursoras das modernas festas literárias, nos lembram que o objetivo primordial de um romancista é entrar em contato com pessoas. […] Se Dickens fosse vivo hoje, adivinhe quem estaria blogando, tuitando de vez em quando, montando websites literários, exumando algumas obras antigas e recolocando-as em circulação sob a forma de e-books? Dickens detestava muitos dos seus editores, que ele considerava parasitas preguiçosos e desonestos; e ele ficaria entusiasmado com todas as oportunidades que temos hoje de fazer uma conexão direta entre autor e leitor”.

É difícil especular o que Dickens faria se, tal qual o fantasma dos natais passados, voltasse para assombrar e escrever. Mas, ao contrário do que diz Porter, acho bem capaz que ele encontrasse em nosso tempo um editor nem preguiçoso nem desonesto — um parceiro que garantisse uma conexão com os leitores, e o estimulasse a seguir escrevendo. Tenho grandes esperanças.

P.S.: Devo os insights sobre a vida de Dickens à curiosidade voraz de Braulio Tavares e ao cabedal de informações que ele oferece em seu blog.

Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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