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Uma biblioteca vazia em memória à destruição de livros
PublishNews, 13/07/2012
Uma biblioteca vazia

Na cidade de Berlim, as marcas e os vestígios da história estão em monumentos e museus e em pequenas placas dispostas em paredes de edifícios e incrustadas no chão, identificando inúmeros lugares da memória. Uma espessura de tempo sempre mais profunda e densa do que o efêmero presente parece acompanhar cada passo dos habitantes e visitantes que caminham no cotidiano da capital da Alemanha, provocando a sensação de que em cada centímetro da cidade há muitas camadas passadas de destruição (e também de conquistas).

Essas marcas se referem às memórias difíceis do período do Nazismo, às de Berlim Oriental e do regime ditatorial da Alemanha que ficou sob a Cortina de Ferro, à celebração da queda do Muro e à memória das glórias imperiais do século 19 (incluindo museus e a exaltação guerreira da Grécia). Entre as questões que se colocam em relação ao período 1933-1945 está, por exemplo, como e com que intensidade lembrar o desaparecimento forçado dos habitantes de uma rua ou quarteirão ou bairro inteiro? Questões como esta são centrais na geografia da memória da cidade.

Entre os monumentos do período nazista, um dos mais instigantes é aquele localizado na Bebelplatz, a praça próxima à Unter den Linden, avenida que leva ao Portão de Brandembrugo. Pedestres e turistas distraídos não têm como notá-lo, o que é mais do que justificável. O monumento é inteiramente subterrâneo e nada se vê ao nível da superfície. Num canto da praça, duas pequenas placas no chão lembram que exatamente ali, em maio de 1933, foi erguida uma imensa fogueira de livros na qual principalmente estudantes nazistas (difícil conjugar estudar com Nazismo) queimaram milhares de livros. O ato é emblemático do início da tomada do poder pelos nazistas e da política totalitária que ali se iniciava.

Entre as placas no chão, um vidro transparente de cerca de um metro quadrado nos provoca a olhar para baixo e para dentro. O que vemos, subterraneamente, é uma biblioteca vazia, prateleiras e mais prateleiras brancas ao redor de uma sala e sem um único livro.

É uma visão difícil na qual se busca algo, um apoio, uma referência que nos permita confortar a memória. E o que encontramos é o vazio e uma estranheza que produzem um efeito perturbador muito distinto de tantos outros monumentos e mesmo museus que aliviam o peso do passado difícil, ao explicar e dar um suporte didático ou informativo (necessário, claro). Monumentos não deveriam ser adornos que lembram ao mesmo tempo em que aliviam o peso do passado difícil, deveriam sempre nos levar a refletir e nos perturbar.

Se o monumento fosse uma biblioteca repleta de livros, ficaríamos confortados de ver os volumes repostos nas prateleiras, vivos, com a biblioteca-monumento na plenitude de sua existência. Mas ali o que se vê é a falta deles, sua radical ausência, aproximando essa ausência do extermínio das pessoas, de seus autores, leitores, estudantes, professores, das pessoas que viviam junto aos livros e que lhes davam sentido.

O monumento fica bem em frente a um imponente edifício da Universidade Humboldt, o que no caso da história do Nazismo é uma associação objetiva frente à significativa participação de estudantes universitários e profissionais diplomados, como advogados, juízes e médicos que aderiram em massa às fileiras nazistas, acreditando no discurso do nacional-socialismo de instauração de uma nova ordem e de um novo homem, e que exigiam como pré-requisitos a destruição de milhões livros.

O monumento ocupa um lugar muito peculiar ao lado do museu Topografia do Terror, do Memorial aos homossexuais vítimas do nazismo, do Museu Gay (que inclui as perseguições durante o nazismo), do Museu Judaico, do Memorial do Holocausto, de centenas de placas em paredes e pequenas placas incrustadas na calçada indicando locais de deportação, de destruição e referência aos que ali viviam e cujas vidas desapareceram.

Junto ao monumento à destruição dos livros, a célebre frase do poeta Heinrich Heine escrita em 1821: quando se começa a queimar livros acaba-se queimando pessoas. A destruição sistemática de bibliotecas, de livros e da cultura dos considerados “racialmente” inferiores e dos opositores políticos acompanhou em todas as etapas o genocídio e as perseguições nos locais de ocupação nazista. Em seu livro História universal da destruição dos livros. Das tábuas sumérias à guerra do Iraque (Ediouro), Fernando Báez conta que muitas outras fogueiras de livros foram erguidas em cidades alemãs em 1933. Segundo ele, a revista Time na época chamou esse processo de “bibliocausto”.

Entre os cerca de 5.500 autores cujos livros foram lançados à fogueira em 1933 estavam Bertold Brecht, Albert Einstein, Sigmund Freud, Ernest Hemingway, Franz Kafka, Sinclair Lewis, Jack London, Heinrich Mann, Thomas Mann, Karl Marx, Robert Musil, Erich Maria Remarque, Marcel Proust, Emile Zola e Stefan Zweig.

Em um célebre poema, Brecht escreveu logo depois da queima dos livros que um poeta, ao constatar que seu livro fora esquecido pelos nazistas, suplica: “Queimem-me / Não façam isso comigo! Não disse / Sempre a verdade em meus livros? / E agora me tratam vocês como se fosse mentiroso! / Ordeno: Queimem-me!”.

O monumento da biblioteca vazia da Bebelplatz não facilita a lembrança desta memória difícil, o que o torna extremamente peculiar e interessante para que não fiquemos jamais confortáveis com esta história.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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