Para pertencer à geração Z, é preciso ter nascido por volta do 2000. E, para haver uma geração Z, foi preciso primeiro, há 50 anos, que um canhão disparasse elétrons em um tubo de ultra vácuo a um preço que a classe média pudesse pagar. A popularização da televisão — máquina doméstica de comunicação em massa — permitiu a formação de uma geração única — a primeira geração eletrônica. Meninos e meninas que cresceram com a televisão tiveram pela primeira vez acesso a uma cultura coletiva, dinâmica, instantânea, (incipientemente) global e (minimamente) plural. Esses meninos da geração eletrônica tinham uns 20 anos em 1968.
“A imaginação no poder” era o sonho e o desafio de 1968. McLuhan tinha acabado de escrever que a (recém-nascida) tecnologia eletrônica e os meios de comunicação tinham conferido àquela geração, a primeira “circuitada”, o poder e a disposição para revolucionar — a cultura, a política, a educação. Era a geração que iria mudar tudo; que poderia mudar tudo; que não mudou. A euforia revolucionária dessa primeira geração eletrônica em 1968 não durou até a virada da década (e, no Brasil, foi logo abreviada com o AI5). No começo dos anos 1970, a geração que iria mudar tudo, sossegou (ou foi sossegada à força) e, repetindo seus pais, começou a gestar a geração seguinte. Tiveram filhos.
Ronaldo Lemos, Cory Doctorow, Batman Zavare e eu, recém-quarentões, pertencemos a essa geração: somos os filhos da geração circuitada. Não somos a primeira geração eletrônica, e tampouco somos a primeira geração digital. Nossa marca é a transição. Nascidos nos anos 1970, já fomos criados com a televisão ligada e, na infância, assistimos à ascensão e obsolescência das tecnologias: VHS, CDs, Fax, DVDs, TV a cabo. Na adolescência, vimos chegar os primeiros (micro)computadores (pessoais) com seus iniciáticos discos de 8 polegadas. Já éramos gente grande quando enfim chegou a internet, e ainda estamos entendendo e enfrentando o que ela pode, o que significa. Fizemos, e ainda estamos fazendo, a passagem, do analógico para o imaterial. Tivemos que aprender que nossa música prescinde de LPs e CDs; que nossas imagens não precisam mais ser reveladas; que livros são o texto, não a pilha de papéis que os contém; que as mensagens levam para chegar apenas o tempo do raio da onda luminosa. Entre céticos e deslumbrados, apocalípticos e integrados, fomos a geração que poderá ver, em nossos filhos, concretizada a profecia de McLuhan proferida originalmente para geração de nossos pais — a da redentora “circuitação eletrônica”, vulgo internet.
A geração Z, a geração de nossos filhos — os filhos dos filhos da primeira geração eletrônica — não precisou de transição, já nasceu digital. O espanto e a curiosidade da minha filha diante de um toca-discos não tem paralelo com meu espanto diante de um gramofone. Meu caso é de evolução qualitativa, o dela é de salto lógico. O imaterial proporciona um câmbio de poder. Não há mais sujeição. É difícil explicar a meu filho que a música no rádio não pode ser repetida; que temos que assistir, na televisão, o que outra pessoa decidiu. Para ele, músicas e filmes não têm contenção, limite, posição — estão o tempo todo, e em todo lugar (no telefone do pai, no iPad da mãe, no tablet da avó, na televisão, no videogame) e são uma decisão e escolha dele, não de outros. Os novos habitantes deste planeta já são produtos de uma cultura do “ilimitado”. Não há restrições de tempo, distância ou mesmo custo. Nada é palpável, estocável — e tudo é acessível pelo feixe dos elétrons. O valor também se relativiza — quando tudo está o tempo todo para todos, mais vale os “likes” dos amigos que o cânone — e não há mais nicho. Para quem nasceu com o milênio, as crianças e adolescentes da tal Geração Z, o cabedal acumulado da expressão humana está à distância e custo de alguns cliques.
O que farão com esse inédito poder esses meninos e meninas que em poucos anos serão adultos? Veremos cumprida enfim a profecia da circuitação eletrônica McLuhiana? A imaginação tomará por fim o poder?
Há quem tema que não, ou torça para que não. Para os digitocéticos como Nicholas Carr, a geração Z seria a “Geração superficial” que, num pacto mefistotélico, ganhou acesso a uma cornucópia de cultura e deu em troca sua capacidade de concentração e reflexão. Se a geração de 1968 advogava o lisérgico “turn on, tune in, drop out” (se liga, se afina, cai fora), a nova geração adotaria uma droga muito mais viciante, o “plug in, log in, drop out” (se conecta, se loga, cai fora). Cada um na sua bolha virtual, satisfeitos como Jonas na Baleia, zanzam sonâmbulos e alheios por um mar de informações sem saber o que fazer com elas. Não seria coincidência que a droga de eleição desse grupo seja o Metilfenidato. Traficada com os nada sutis nomes de Ritalina© e Concerta©, ela promove uma “antionda” no usuário, concertando-o, tornando o pensamento reto, abafando os sentidos para os milhares de estímulos que disputam sua atenção e dando-lhe o foco para o paciente — portador do transtorno do déficit de atenção — tornar-se um cidadão produtivo da lógica mercantilista e linear. Se o LSD “abria as portas da percepção” para a revolucionária geração eletrônica, o Metilfenidato “fechará as portas da percepção” para a solipsista geração digital.
Talvez seja esta a questão. Quando um grupo acusa o outro de alienação é porque ambos já estão, de modo irrevogável, em ambientes diferentes. O ambiente dos nativos digitais não é o mesmo dos seus pais. É bem mais amplo. Nicholas Carr, alguns pais angustiados e outros detratores da geração Z estão lamentando o fim de uma tradição imemorial, a do pensamento sequencial, lógico. A das ideias trasformadas em símbolos, e estes sequenciados na escrita, e esta replicada na imprensa e esta transformada em mercadoria estocável uniforme e uniformizante. Se encararmos a geração Z pelo ponto de vista eufórico, “this is (at last) the dawning of the Age of Aquarius”. Na era do pensamento paralelo, multitarefa preemptiva, o déficit de atenção seria considerado um superávit de criatividade. Andar por aí portando Google Glasses não seria encarado como uma paixão pelo próprio umbigo; a realidade aumentada e a virtual seriam complementos, e não substitutos à “realidade” tangível. “Os povos primitivos e anteriores ao advento do alfabeto integram tempo e espaço como um espaço acústico, sem horizontes, sem fronteiras”, dizia McLuhan, preconizando que a “circuitação eletrônica” traria de volta esse poder sensorial perdido com a imprensa. De fato, o homo reticulis da Geração Z lembra muito esse povo primitivo, em seu desrespeito às fronteiras, às distâncias, à materialidade. Um retorno à sensibilidade do primitivo, com a tecnologia da vanguarda, pode transportar-nos aos períodos áureos da criatividade humana, à Era Helênica dos Heróis, ao animismo, ao panteísmo. Pense em Sócrates que condenou a “tecnologia” da escrita e pense em Steve Jobs, que disse trocar toda sua tecnologia por uma tarde conversando com Sócrates. O ciclo se fecha.
Em mais alguns anos, a geração Z vai ser adulta, vai ocupar o mercado de trabalho, vai deter o poder econômico. Solipsistas comunitários, viciados-em-gratificação-instantânea engajados com utopias, individualistas compartilhadores compulsivos, bairristas globalizantes, iconoclastas curiosos, multifuncionais dispersos, artesãos tecnológicos, panteístas geeks. A sociedade e a cultura serão o que a Geração Z for. Seremos.
[Texto escrito para o Catálogo Multiplicidade 2012, editado por Batman Zavarese, com textos de Ronaldo Lemos, Braulio Tavares, Tom Zé e outros].
Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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