Uma das atrações surpreendentes para o turista que chega a Recife para alguns dias de visita é o Circuito da Poesia, um roteiro com estátuas em memória e homenagem a escritores, poetas e músicos cuja vida ou obra está associada à capital pernambucana.
O percurso se dá em torno do centro antigo da cidade e estão ali Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Luiz Gonzaga, Chico Science, Capiba, Antônio Maria, Joaquim Cardozo, Carlos Pena Filho, Mauro Mota, Solano Trindade e Ascenso Ferreira.
Cada autor é lembrado por uma estátua bem descontraída, do artista plástico Demétrio Albuquerque, e que de alguma forma convida à aproximação e às vezes ao abraço e diálogo imaginário, contemplando a paisagem – e, ao lado, fica uma placa com um pequeno texto biográfico e um trechinho da obra, letra de música ou poesia.
Encontrar a memória e um fragmento da produção de cada um destes personagens, da poesia, da ficção, do modernismo, da música, é viajar um pouco pela espessa densidade cultural de Recife. As perspectivas de cada autor sobre a cidade são tão diferentes que o roteiro se torna uma peculiar iniciação à capital pernambucana, suas ruas e transformações urbanas, os agudos contrastes sociais, seus personagens, a cultura popular, o mar, o mangue.
A infância e a cidade do passado estão presentes nos versos de Manuel Bandeira, nascido em 1886, em “Evocação do Recife”, um dos seus poemas mais conhecidos (do livro Libertinagem, de 1930) “Recife / Não a Veneza americana / Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais / Não o Recife dos Mascates / Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois / - Recife das revoluções libertárias / Mas o Recife sem história nem literatura / Recife sem mais nada / Recife da minha infância / A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado / e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas.”
Imagens das transformações urbanas e sociais de Recife nos anos 1930 e 1940 estão em uma exposição no Museu da Cidade, localizado no Forte das Cinco Pontas, remanescente da batalha final entre holandeses e portugueses em 1654. Um precioso acervo fotográfico mostra inclusive cenas de marinheiros norte-americanos no carnaval nas ruas do Recife durante a Segunda Guerra Mundial.
A infância de Clarice Lispector em Recife, época de imigração, de dificuldades econômicas e da morte de sua mãe em 1930, foi um tempo duríssimo para a escritora. Na biografia Clarice, Benjamin Moser conta que um entrevistador perguntou a ela: “Sabemos que você passou toda a sua infância aqui no Recife, mas o Recife continua existindo em Clarice Lispector?” E ela respondeu: “Ele está todo vivo em mim”. Clarice viveu em Recife dos cinco aos quinze anos e chegou a frequentar a Livraria Imperatriz, fundada em 1930. “A primeira infância, com sua felicidade perdida e suas tragédias incontornáveis, nunca se afastou do seu pensamento”, escreveu Benjamin Moser nesta imperdível biografia, e ainda: “A decepção que vivenciara quando era uma menininha de nove anos lhe ensinara como são inúteis tais esforços poéticos. Escrever era a última coisa que poderia conduzir a um final feliz uma realidade inflexível”. “Criei-me em Recife”, escreveu Clarice, “e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira [...] Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas”.
A paisagem do mar, do mangue e os contrastes sociais da cidade têm muitas vozes. “Aqui o mar é uma montanha / regular, redonda e azul, / mais alta que os arrecifes / e os mangues rasos ao sul.”, escreveu João Cabral de Melo Neto (1920-1999) no poema “Pregão Turístico do Recife”. “Tô enfiado na lama / É um bairro sujo / Onde os urubus têm casas / E eu não tenho asas”, escreveu Chico Science em “Manguetown”.
Em diferentes locais da “Veneza americana” – estações de metrô e no aeroporto – há vitrines de autores pernambucanos com livros variados e bem expostos. Esse “particularismo” é muito bem-vindo, se é que se pode chamar Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto ou Clarice Lispector de literatura “local”. Em geral, as livrarias de rodoviária e de aeroporto, porta de entrada dos turistas, são pródigas em estabelecer um território nulo no qual é mais fácil encontrar algo como “dez lições para sua mente evoluir” do que um guia turístico ou obra de autor regional.
A “Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais”, de Bandeira, está presente no Instituto Ricardo Brennand, onde estão expostos livros sobre o Brasil holandês do século 17, como um tratado de botânica e crônicas de batalhas, além dos quadros de Frans Post e outros documentos, mapas e utensílios quer permitem uma rara visão daquela época. Os livros e as manifestações artísticas e científicas do colonialismo ilustrado de Maurício de Nassau são tão atraentes que quase somos envolvidos pela atmosfera de idealização deste intervalo colonial (1630-1654) representado pela figura de Nassau, como a fantasiar outro destino possível a um futuro Brasil que poderia, imaginariamente, ser mais industrioso, ilustrado, tolerante e liberal na religião (e sem Inquisição, claro) e na cultura.
Recife oferece vários outros passeios relacionados a livros, incluindo a pequena Rua Marquês do Recife, com suas bancas de sebos e discos de vinil. A literatura de cordel é oferecida em lojas de artesanato e bancas de jornal e constitui uma atração forte em vários lugares da cidade.
Estas impressões são apenas anotações de turista em um fim de semana prolongado, mas o fato é que mesmo um rápido e pequeno circuito turístico encontra em Recife livros e literatura em várias formas: da poesia modernista de Manuel Bandeira ao cordel, dos livros holandeses do século 17 à Clarice Lispector, de Gonzaga a Chico Science, de João Cabral ao frevo, do manguebeat às vitrines de autores pernambucanos. Testemunhos vivos e efervescentes da presença dos livros, da literatura, da música e da cultura pernambucana em um roteiro que poucas capitais no Brasil oferecem ao turista de forma tão fortuita e generosa.
Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.
Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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