O filme “Corações Sujos”, dirigido por Vicente Amorim, conta de forma ficcional a história de um conflito violento dentro do grupo nipo-brasileiro no Estado de São Paulo em 1946 e 1947. O filme é baseado no livro de mesmo nome do jornalista Fernando Morais.
Mas uma história igualmente dramática ocorreu com os imigrantes em São Paulo entre 1939 e 1945, durante a Segunda Guerra Mundial: os imigrantes japoneses e seus descendentes foram duramente discriminados e perseguidos pelo governo, expulsos de Santos e do centro da capital paulista. A eclosão da violência em 1946 só pode ser compreendida a partir desta dramática situação anterior.
Um aspecto particularmente violento desta perseguição foi a proibição de editar, fazer circular e ler qualquer livro, revista ou jornal escrito em japonês. O Estado Novo de Getúlio Vargas tornou os livros, a língua e a cultura japonesa inimigos da pátria, independentemente do que estava escrito. Se é fato que a partir de 1937, com o Estado Novo, houve restrições em geral à utilização de línguas que não o português, a repressão foi mais dura e extensa no caso dos nipo-brasileiros.
A leitura, os livros e os jornais tinham uma importância central naquele período para o grupo imigrante e sua proibição foi devastadora. Já escrevi aqui sobre o Os livros de Sayuri, de Lúcia Hiratsuka (Edições SM), que conta de forma comovente esta história tão dramática.
Entre 1943 e 1945 houve várias investidas da polícia em casas nas redondezas da Rua Conde de Sarzedas, no bairro da Liberdade, e os nipo-brasileiros foram expulsos de suas casas para o interior. Em 23 de maio de 1943, a polícia confiscou livros e revistas na livraria japonesa Endo, depois também na Oriente, Toyoyoshi e Nambei. “Eles costumavam vir em grupo de quatro ou cinco e às vezes havia entre eles pessoas sem identificação. O objetivo da revista era verificar se havia armas clandestinas ou algum documento revelando que os moradores eram militares ou ocupavam cargos relacionados com o governo japonês”, conta o cronista e pintor Tomoo Handa em O imigrante japonês. História de sua vida no Brasil (T.A.Queiroz).
A proibição do ensino da língua nas escolas e da circulação de livros e jornais em japonês quebrou a espinha dorsal da comunidade japonesa. No final da década de 1930, cerca de 30 mil filhos de imigrantes estudavam em 486 escolas da comunidade. Em 1939, 219 delas foram fechadas e em boa parte desses locais não havia escola pública próxima. No que se refere à imprensa, de 11.576 pessoas consultadas em uma pesquisa em 1939, um total de 87,72% eram assinantes de jornais em japonês.
Era, portanto, por meio da língua nas escolas e nos livros e jornais que a comunidade mantinha seus laços culturais e preservava seu vínculo com o país de origem, mas, igualmente, estruturava sua permanência no Brasil, divulgando notícias locais, literatura produzida aqui, atividades de clubes e anúncios de lojas especializadas.
A proibição da publicação de jornais impôs aos imigrantes um isolamento do Japão, mas igualmente do próprio Brasil, já que os jornais eram provavelmente o único meio de ter notícias locais. Isso levou os imigrantes a um profundo isolamento cultural e social e a uma forte pressão psicológica que propiciou a circulação de rumores sem qualquer veracidade envolvendo o Japão, o que se agravou com o fim da guerra, os ataques nucleares ao Japão e a rendição com o discurso do imperador.
Não foi, assim, por pendor fanático ou fundamentalista que muitos imigrantes foram levados a desacreditar a derrota japonesa e alguns aderiraram às armas. Foi uma resposta ao limbo cultural em que eles passaram a viver, sem informação e sem âncora segura de identidade na terra que escolheram para imigrar e viver – ao que se acrescentam valores e crenças como a ideia da infalibilidade do imperador e a descrença na possibilidade da derrota do país de origem.
Perseguidos e abandonados em sua nova terra, colocados diante da escolha entre Brasil e Japão, os imigrantes e seus descendentes se viram em um contexto de intenso conflito de identidade – e foi neste terreno que eclodiu a violência e os terríveis assassinatos contra os chamados “derrotistas”. Isto não significa justificar a inaceitável violência dos chamados “vitoristas”, mas entender o contexto em que o conflito eclodiu.
A pergunta não é o que os “japoneses” faziam ou fizeram, mas entender de que forma um governo e seus milicianos do patriotismo contruíram uma ideia de nacionalidade e nação baseadas na exclusão e na perseguição de um grupo, de sua cultura, seus livros e jornais. Os “japoneses” e os “amarelos” se tornaram inimigos menos por serem associados ao Japão e ao Eixo, contra o qual o Brasil estava em guerra desde 1942, e mais por uma concepção anti-japonesa de imigração que se disseminou desde os anos 1920. Este racismo incidia sobre um grupo que era, ao mesmo tempo, admirado por sua iniciativa no trabalho, na agricultura e no cooperativismo.
Foi a partir desta violência contra o grupo nipo-brasileiro que se pode entender a história contada em “Corações Sujos”, que foca apenas no período 1946-1947 para contar um episódio de “fundamentalismo”.
Os anos de 1939 a 1945 foram para os nipo-brasileiros um período trágico no qual a proibição e a perseguição contra a cultura japonesa e seus livros contribuiu para desestruturar socialmente um grupo que escolheu o Brasil para imigrar, viver, criar e imaginar um outro futuro para seus filhos, mantendo suas tradições e vínculos com o país de origem – o que lhe foi negado com violência pelo Estado brasileiro nos anos 1930 e 1940.
Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.
Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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