Uma bruxaria pode acabar com o medo dos e-books e salvar o mercado digital
Recém-surgidos, os livros digitais já têm história. E, em poucos anos de existência, sua evolução tem passado pelas mesmas etapas que seus correlatos, os livros impressos, levaram seis séculos para cruzar.
É justo dizer que ainda não sabemos o que é um livro digital, ou o que pode vir a ser um livro digital. Os e-books atuais deveriam se chamar, mais apropriadamente, de e-incunábulos. Assim como seus equivalentes do século 15 — os primeiros livros produzidos com a então revolucionária tecnologia de imprensa —, os incunábulos eletrônicos estão primeiramente preocupados em imitar, emular, simular. Os e-books têm “páginas” folheáveis, “capas” e, na maioria das vezes, dão as costas aos recursos digitais, tentando parecer o mais possível como um livro que acabasse de se tirar da estante. E os editores de e-books muitas vezes ainda se comportam como se vendessem pesados blocos de polpa de papel, e não informação e entretenimento imateriais.
Seis séculos atrás, a Bíblia impressa por Gutenberg tinha que parecer como se fosse manuscrita por um monge caprichoso. Um pouco mais tarde, quando a evolução da imprensa propiciou que todos os exemplares fossem iguais e, mais importante, tornou viável que uma pessoa pudesse comprar livros e montar uma biblioteca, foi criado um outro recurso para personalizar e proteger o livro, o ex-libris, uma marca em cada exemplar deixando bem claro quem era o dono do livro.
É curioso que a volta do ex-libris aos livros (digitais) venha pelas artes de uma figura tão medieval quanto um bruxo. Na semana passada, após meses de espera e muitas unhas roídas por parte dos fãs, finalmente foram lançadas as versões digitais dos livros de Harry Potter. E com elas novidades importantes para o mercado editorial, uma delas candidata a pedra filosofal: a marca d’água, que promete derrotar o maléfico DRM.
Para fins de marketing, pelo menos, seria mais apropriado chamar a watermark, esse registro individualizado eletrônico, por outra metáfora editorial, o ex-libris. Afinal, a marca d’água tradicional foi um recurso inventado pelos papeleiros e editoras para garantir a todos que o livro era feito por eles, enquanto que o ex-libris era um recurso que o leitor tinha para garantir a todos que o livro era dele. De fato, é isso o que acontece com a marca d’água digital: cada livro comprado (obrigatoriamente no site Pottermore, ainda que a compra em si seja feita no site da Amazon ou outra livraria), é individualizado com um código. Se esse e-book for passado adiante, levará o registro de dono. Se for encontrado, por exemplo, em um site de torrentes ilegais, como o Piratebay, ficará fácil enquadrar o bucaneiro responsável. Mal comparando, é como se alguém tentasse vender uma obra rara que trouxesse, na folha de rosto, um ex-libris dizendo “Acervo da Biblioteca Nacional”.
A diferença fundamental é que, enquanto os ex-libris tradicionais eram criados e colados pelos proprietários dos livros, a marca d’água digital é “embutida” pela editora. Por outro lado, para o leitor, não há qualquer constrangimento quanto a onde e quando ele pode ler. E aí reside a imensa evolução em relação ao que existia antes, o DRM.
O Gerenciador de Direitos Digitais, na sigla em inglês, é um resquício do tempo em que o mercado de conteúdo cultural (livros, música, filmes) ainda acreditava firmemente que as pessoas queriam comprar os suportes, e não o conteúdo. Ele define onde (em que aparelho, ou por quanto tempo) você pode desfrutar daquilo que você, por ter comprado, achava que era “seu”. O medo era de que cópias digitais, que quase nada rendiam às editoras, acabassem com o núcleo do negócio, os livros impressos. O sistema do DRM funciona basicamente na presunção de que o leitor/ouvinte/espectador vai cometer pirataria.
É evidente que essa abordagem, principalmente quando se tenta introduzir um novo produto ou formato, como é o caso dos e-books, já nasce viciada. Se você entra em uma relação com o cliente já desconfiando dele, que razões ele vai ter para confiar em você?
Em um contrato que assinei recentemente com uma das maiores redes brasileiras para distribuir meus e-books, havia uma cláusula que afirmava que o editor (eu) “expressamente reconhece que o DRM (Digital Rights Management) é eficaz para realizar a gestão de direitos digitais e restringir a difusão por cópia desautorizada de conteúdos digitais”. A cláusula deve ter sido escrita para tranquilizar editores temerosos, porém, quando a assinei, senti-me como um ateu forçado a rezar o Credo. Acho mais científico acreditar na “ressurreição da carne” do que na eficácia do DRM. Por pelo menos dois motivos simples: o primeiro é porque fracassou. Fracassou no caso dos CDs (os que sobreviveram não têm DRM) e fracassou no caso dos DVDs, onde o código foi imediatamente hackeado. Essa é a segunda razão: tentar restringir alguma coisa no mundo digital serve apenas para entreter um batalhão de hackers anônimos, como os que, segundo a Macworld, quebraram o código protetor dos DVDs “como se abrissem uma melancia com uma motossera”. (De fato, qualquer pessoa que saiba googlar e tenha algum tempo livre saberá desabilitar o DRM de um e-book.) Em 2007, o finado Steve Jobs escreveu uma singela carta à indústria fonográfica, apelando para que dessem um salto de fé e suspendessem o DRM nas músicas vendidas pela Apple — “em prol de um mercado verdadeiramente interoperável”. A indústria fonográfica resistiu, mas enfim aquiesceu, e a iTunes Store, a primeira loja a vender música sem DRM, é hoje sua maior fonte de renda.
Voltando ao Harry Potter, foi registrado que, entre o lançamento oficial e a primeira cópia em um site pirata pronta para download, passaram-se meras 48 horas. A boa notícia é que este primeiro exemplar pirateado trazia para quem soubesse ler a marca do comprador original, que está à distância de um e-mail (registrado no site Pottermore) de ser processado judicialmente. Mas a melhor notícia é que, para um e-book chegar a um site pirata, levou-se o dobro do tempo para que lá chegasse um livro impresso. Os lançamentos de J. K. Rowling em papel costumavam ser escaneados e convertidos em texto ou PDF e, em menos de um dia, estavam à disposição para download ilegal. (No caso do Brasil, traduções feitas em regime colaborativo faziam os livros chegarem à web antes da publicação pela Rocco). Quero crer que isso é um sinal de que editores e leitores estão começando a ter um relacionamento mais respeitoso (e prazeroso) de ambas as partes: aqueles dão a esses a liberdade para ler, esses retribuem aqueles comprando. Mas nesse wishful thinking há um porém. Um detalhe que pode fazer toda a diferença: no caso do Pottermore, não é bem a editora quem está fazendo o mercado evoluir. É a autora. J. K. Rowling, que tem os recursos financeiros (e a inteligência) para prescindir das editoras (e de suas restrições) e ainda conseguiu subjugar uma gigante como a Amazon (você pode chegar ao livro por lá, mas a compra será efetuada diretamente no site da autora).
Mais poder ao autor e ao leitor?
Desintermediação? Ou simplesmente bruxaria?
Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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