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No meio do caminho tinha uma pedra polonesa
PublishNews, 23/03/2012
No meio do caminho tinha uma pedra

Em meio às celebrações pelo início da reedição da obra de Carlos Drummond de Andrade, pela editora Companhia das Letras, vale lembrar o interessante e curioso Uma pedra no meio do caminho. Biografia de um poema, lançado há pouco pelo Instituto Moreira Salles, reedição de um livro de mesmo nome lançado originalmente em 1967.

O volume original apresentava uma coleção, reunida pelo próprio Drummond, de críticas e comentários sobre seu poema “No meio do caminho”, publicado na Revista de Antropofagia em 1928 e depois incluído em Alguma poesia, de 1930, início de sua trajetória literária. O interessante e divertido é que boa parte das críticas selecionadas pelo próprio poeta são cruelmente negativas, incluindo as escritas por ferrenhos parnasianos, que debochavam e destratavam poema, poeta e Modernismo, tratados como pífios e ridículos.

“No meio do caminho”, também pela violência da crítica, se tornou, com o passar dos anos, uma espécie de poema-manifesto do Modernismo. O livro do Instituto Moreira Salles possui uma segunda parte, organizada por Eucanaã Ferraz, que atualiza a edição de 1967 e inclui páginas posteriores de crítica literária, como a preciosa análise de Davi Arrigucci Jr. “A pedra e a reflexão”, de 2002.

“No meio do caminho tinha uma pedra” se tornou uma frase-pensamento com vida autônoma e integrada às expressões populares do país. Ler hoje a seleção de críticas ao poema, a partir dos anos 1930, é – além de divertido, às vezes hilariante – refazer o percurso do Modernismo e dos debates literários ao longo dos anos 1920 a 1950. Difícil recuperar a importância do debate desencadeado, por exemplo, pela utilização de “tinha” ao invés de “havia”, estabelecendo outro código linguístico para a arte e a poesia.

Eu estava com o pensamento nas pedras quando li os belíssimos Poemas, da polonesa Wislawa Szymborska (Companhia das Letras, tradução do polonês por Regina Przybycien), prêmio Nobel de Literatura e falecida há pouco, e Duplo canto e outros poemas, do franco-chinês François Cheng (Ateliê, tradução de Bruno Palma). Embalado pela pedra drummondiana, fiquei encantado com os poemas de ambos dedicados às pedras – sem nenhuma intenção de reduzir a pedra poética do poeta de Itabira ao seu aspecto geológico (não que isso desmereça uma pedra, ao contrário; basta visitar o Museu de Geociências da USP para conhecer a veia poética de minerais, rochas, gemas, meteoritos, fósseis e outros).

No singular e intrigante “Conversa com a pedra”, Szymborska dialoga com uma pedra. Sua poesia, bem humorada e irônica, é de uma complexidade tão intrigante e engenhosa que, ao final, parece simples e cotidiana. Reproduzo duas estrofes:

“Bato à porta da pedra.

– Sou eu, me deixa entrar.

Venho por curiosidade pura.

A Vida é minha ocasião única.

Pretendo percorrer teu palácio

e depois visitar ainda a folha e a gota d´água.

Pouco tempo tenho para tudo isso.

Minha mortalidade devia te comover.

– Sou de pedra – diz a pedra –

E forçosamente devo manter a seriedade

Vai embora

Não tenho os músculos do riso.”

De François Cheng, reproduzo um trecho de “Um Dia, as Pedras”, primeira parte de Duplo canto:

“Do pé à pedra

Um passo apenas

Mas quantos abismos a transpor

Somos submissos ao tempo

Ela, imóvel

no coração do tempo

Somos limitados aos ditos

Ela, imutável

no coração do dizer

Ela, informe

capaz de todas as formas

Impassível

Portadora das dores do mundo

Rumorejante de musgos, de grilos

de brumas transmudadas em nuvens

Ela é via de transfiguração

Do pé à pedra

um passo apenas

Para a paciência

Para a presença”

Entre tropeços, permanências, enigmas e eternidades, eu sempre gostei de pedras – pedras no sentido leigo e genérico –, desde aquelas que a gente chuta pelo caminho, dos oito aos oitenta anos, e eventualmente entabula uma tabelinha, até, por exemplo, aquela pedra gigantesca do Núcleo das Águas Claras do Parque da Serra da Cantareira, à qual se chega por meio de uma boa caminhada e da qual se tem uma deslumbrante vista de São Paulo. Sentado naquela imensa pedra (que existe desde quando?), a infinita metrópole se torna um pequeno mundo capturável pelo olhar.

Aos que gostam de poesia e pedra, sugiro – além de ler esses poemas e livros – que encontrem muitas pedras pelo caminho, façam o passeio da pedra da Serra da Cantareira e visitem o Museu de Geociências na Cidade Universitária, em São Paulo, lugares onde as pedras ganham vidas inesperadas, com suas infinitas faces, cores, brilhos, ranhuras e texturas. A combinação de pedra e poesia pode iluminar sempre os bons e maus tropeços nos caminhos da vida.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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