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A alma do negócio e o negócio das “almas”
PublishNews, 08/03/2012
A alma do negócio e o negócio das “almas”

Por uma e-conomia do livro

Por conta dos pitacos que escrevo aqui para o PublishNews (e também em livros, como este e este aqui), às vezes me colocam na posição de político ou advogado. As pessoas me interpelam no dentista, na padaria, na praia, para dar sua opinião sobre os livros digitais, ou melhor, para assumir suas posições no “confronto”. As frases que mais ouço são “isso não vai substituir os livros” e “livro sem papel não é livro”. Como essa última frase faz, para mim, tanto sentido quanto o lema das feministas italianas — “una donna senza uomo è come un pesce senza bicicleta” — fico sem ter o que dizer. Não seria melhor discutirmos o que um livro pode ser do que insistir em definir o que ele é?

Recentemente encontrei uma forma curta e (espero) elegante para me esquivar da discussão “o que é um livro”. Eu simplesmente pergunto: “o que é um ser humano? É o corpo ou a alma? Um corpo sem ‘alma’ não é um ser humano, é um amontoado de células; uma ‘alma’ sem um corpo é, no máximo, um fantasma”. Sei que soa religioso, mas a metáfora é precisa: um livro é uma mensagem/texto/conteúdo (“alma”) e um suporte/meio (“corpo”), e não uma dessas coisas em separado. O que há de novo é que dispomos agora da tecnologia para que um texto não fique mais fixo a um único suporte. O texto e o suporte não são mais a mesma coisa. A mensagem não é mais o meio. Voltando à metáfora “espírita”, os livros, como conhecíamos, eram materialistas radicais (“tu és polpa e ao pó das estantes voltarás”) — com os e-books, passamos para a livre metempsicose, a transmigração das almas.

Mas esta coluna não trata de metafísica — como diz o subtítulo, quero falar de economia, de dinheiro. O que coloco em discussão é a conveniência (e o risco) de se empregar a lógica econômica de um mercado de “corpos” neste novo mercado de “almas”. Explico com um exemplo recente, a Kodak. A gigante da fotografia insistiu que seus clientes queriam fotografias (em papel), quando o que eles queriam eram imagens. Em outras palavras, ela queria vender “corpos”; eles queriam comprar “almas”. Quando a tecnologia permitiu a livre transmigração das imagens, com as câmaras digitais e os arquivos jpg, deu-se o lamentável “momento Kodak”: a bancarrota. (É escusado dizer que o mesmo aconteceu com a outrora poderosa indústria fonográfica, que queria vender discos, ou “corpos”, quando as pessoas queriam comprar músicas, ou “almas”). Mesmo quando aderiu, e foi mesmo pioneira, ao mercado de fotografias digitais, a Kodak insistiu em usar a lógica econômica que conhecia: a dos bens estocáveis, câmaras e filmes — a dos “corpos”.

A indústria editorial está fadada a seguir os passos que levaram a indústria fonográfica ao abismo? Ou será que encontraremos novos caminhos para vender o livro, em um mercado multiformato? A esse respeito, gostaria de comentar algumas das pertinentes reflexões que Pedro Almeida, meu colega (de PublishNews e de profissão) trouxe para essa arena. Ele parte de uma das ameaças mais repetidas entre as cassandras de plantão: “Se o e-book acabar com o livro impresso, acabará por tabela com a cadeia de produção editorial (e, por conseguinte, com as editoras?)”.

Pedro é experiente e desassombrado, e trata de desbaratar essa dupla falácia. Para ele, a existência de editoras tradicionais (que fazem grandes investimentos e selecionam cautelosamente o que publicar atendendo a expectativas financeiras) não conflita com a liberdade que qualquer um tem de escrever o que quiser, em blogs ou por meio da autopublicação. Está refutada, assim, a pecha do editor como “gate keeper”, o poderoso guardião do reino dos publicados. Ele também sustenta, coberto de razão, que esse “guardião” faz o trabalho indispensável de “filtrar o lixo [trazido pela universalização do acesso à produção e conteúdo] e ver o que importa”. Essa triagem, diz, não pode ser feita pela amorfa legião dos internautas, a chamada crowd wisdom. (Sobre isso, apenas para temperar a discussão, cabe dizer que foi a crowd wisdom quem escolheu alguns dos maiores sucessos recentes: A cabana, originalmente autopublicado; Diário de um banana, um blog; e Meu pai diz cada merda, um twitter).

"O livro que merece ser publicado é aquele que tem público interessado em lê-lo”, sintetiza Pedro. Eu gostaria de explorar a relação entre essa frase, inatacável, com outro fato cristalino que ele cita adiante: “…ainda que o e-book acabasse com o livro impresso, toda a cadeia produtora precisaria ser mantida: autores com grandes adiantamentos, corporações que investem pesadamente neles, tradutores, agências de marketing, estúdios de Hollywood, revisores, designers etc”. Se juntarmos as duas prerrogativas, o que se tem é que

O livro que merecer ser publicado é aquele que tem um público interessado em lê-lo […] em um volume grande o suficiente para compensar o custo de autores com grandes adiantamentos, corporações etc.

Ou seja: o imperativo financeiro ainda limita ou sobrepõe-se ao interesse do público para decidir o que venha a ser editado. Um público interessado — porém em quantidade insuficiente para atingir o ponto de equilíbrio — não disporá de livros, não será atendido. Pelo menos não na lógica econômica do livro impresso.

Já que desbaratamos alguns falsos confrontos (e-book versus livro impresso; editores “gate keepers” versus autores “libertos”), eu proponho que deixemos mais um paradigma para trás e paremos de enxergar a falsa contradição entre a economia do livro tradicional e a dos livros feitos com recursos digitais (tanto os e-books quanto os livros impressos sob demanda). Cada segmento pode e deve ter uma lógica financeira própria. Os livros com recursos digitais não precisam ser encarados como concorrentes dos tradicionais e, assim como as “páginas” dos e-books não precisam ser cópias rígidas (PDFs) dos livros impressos, também seu público, seus custos e seu ponto de equilíbrio não podem ser medidos com as réguas dos livros estocáveis. O foco não deve ser no formato, mas na vontade do leitor. “O livro que merece ser impresso é aquele que tem o público interessado em lê-lo”. Certo. Com o digital, temos uma chance de compor uma lógica financeira — e uma estratégia de mercado — onde livros merecerão ser distribuídos em ambos os formatos e outros se adequarão melhor aos e-books. Dessa forma, livros com públicos fiéis, porém restritos, poderão alcançar seu leitor e remunerar seus editores. As almas perdidas encontrarão seu lugar. A cadeia produtiva não acabará: pelo contrário, se expandirá e terá mais elos.

Ou podemos manter tudo do jeito que está, vendendo apenas “corpos”, e somente aqueles com público suficiente para cobrir os investimentos pesados. E esperar a hora certa para entrar no mercado das “almas”. É bom lembrar, porém, que quando a Kodak enfim resolveu passar seu slogan de “você aperta o botão, nós fazemos o resto” para “compartilhe momentos, compartilhe a vida”, seu filme já estava queimado…

Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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