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O caixote, a imaginação e os livros infantis
PublishNews, 15/04/2011
O caixote, a imaginação e os livros infantis

“Escrevo há muito tempo. Costumo dizer que se ainda não aprendi não foi por falta de prática. Comecei cedo; minhas recordações de infância estão ligadas a isso: a ouvir e contar histórias. Não só histórias de personagens que me emocionaram, me intrigaram, me encantaram, me assustaram – o Saci-Pereê, o Negrinho de Pastoreio, a Cuca, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarzan, os Macabeus, os piratas, Emília, João Felpudo, Huck Finn –, mas também as histórias que eu ouvia de meus pais, de parentes, dos vizinhos, e aquelas que eu próprio inventava”.

Assim o escritor Moacyr Scliar, falecido há pouco, começa o seu livro de memórias O Texto, ou: a Vida (Betrand Brasil, 2007). Em belíssimo texto, meu vizinho de coluna José Luis Tahan lembrou de um dia em que passou com Scliar em Santos e de sua inesgotável capacidade de contar histórias e cativar leitores e plateias. Scliar era um exímio contador de histórias, um narrador que misturava memórias e ficção nas páginas dos seus livros e nos encontros ao vivo. Seus primeiros livros, entre romances e contos, A balada do falso messias, A Guerra do Bom Fim, O Centauro no Jardim e Exército de um homem só, entre muitos outros, cativaram leitores a partir dos anos 1970.

“A história é feita de palavras. Palavras são fundamentais para quem escreve, como a madeira, a serra, o martelo, os pregos, para o marceneiro. Esta comparação, no meu caso, é mais do que adequada”, conta ele, e explica: “Passei boa parte da minha infância na oficina de móveis do meu tio. Como não podia comprar brinquedos em lojas – eram muito caros –, eu próprio os fabricava, utilizando a madeira que sobrava dos móveis. Confeccionava, assim, aviões e navios de guerra, todos com muitos canhões – cada canhão representado por um prego, com o que ficava fácil criar um grande poder de fogo. Lembro destes brinquedos com saudades. Ensinaram-me também a usar a imaginação para com ela suprir as deficiências dos objetos toscos”, escreve Scliar.

Lembrando da casa de infância, conta ele: “Era precária – o assoalho cedia ao passo, ratos disputavam corridas no forro –, e minúscula. Havia uma saleta na frente (...) e, no fundo, o pátio, onde o capim vicejava, selvagem: mar. Neste mar, eu navegava rumo a países distantes a bordo de meu navio (um caixote de madeira). Piratas a bombordo! Monstros a estibordo! Os perigos, eu os enfrentava galhardamente, mas jamais desembarquei nas míticas regiões que povoavam a minha imaginação; de alguma maneira foi o que fiz com a minha ficção”.

O capim selvagem no quintal que virava mar, o caixote de madeira que se tornava um navio e as palavras trabalhadas como matéria-prima da imaginação. Penso nestas memórias de Moacyr Scliar quando leio que um dos caminhos entusiasticamente apontados como o “futuro” do livro infanto-juvenil é uma plataforma digital que oferecerá tantos recursos interativos que o livro mais parecerá um videogame.

Será o livro-videogame sucessor do caixote de madeira? Ao contrário das palavras, que deixam um infinito território para a imaginação, o videogame a preenche totalmente, a coloniza eletronicamente, a esgota de cansaço.

Além disso, contar uma história, como escreve Scliar, é estabelecer vínculos afetivos entre adultos e crianças. Aos ler um livro com palavras e ilustrações impressas estamos não apenas permitindo aos pequenos criar ferramentas para imaginar outros mundos possíveis, estamos também nos assumindo como narradores das histórias pessoais e coletivas e mostrando às crianças como fazê-lo, como serem autores de suas próprias histórias, de sonhos e desejos de transformação. As histórias infantis são narrativas que estruturam nossa capacidade de estar no mundo, de lidar com emoções e temas primordiais, das questões existenciais às sociais, e que pedem a cumplicidade amorosa dos adultos para possibilitar o crescimento pessoal e uma vida coletiva efetiva.

“Todas as noites a gente do Bom Fim se reunia para conversar. Nas quentes noites de verão sentavam em cadeiras nas calçadas; nas noites de inverno na cada de um, na casa de outro, frequentemente na cozinha, que era a peça mais aquecida. No verão ou no inverno, a distração preferida – numa época em que não havia televisão, em que o cinema era raro e raros os espetáculos teatrais – era contar histórias. Uma tradição judaica, que tinha nos moradores do Bom Fim notáveis cultores. Meus pais, em especial, eram grandes contadores de histórias, dessas pessoas que encantam os outros com suas narrativas. Acho que, se me tornei escritor, foi em grande parte por identificação com eles, por querer compartilhar o prazer que tinham em contar uma boa história”.

Imaginar o mar a partir de um capim no quintal, brincar de pirata num navio-caixote, preservar a conversa, a narrativa de historias que encantam e compartilhar o prazer de contar uma boa história: desafio humanizador que é preciso preservar em meio ao furacão digital.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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