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Hercule Florence na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
PublishNews, RONEY CYTRYNOWICZ, 14/07/2015
Roney Cytrynowicz visitou a exposição sobre Hercule Florence na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e conta o que achou por lá

O olhar de Hercule Florence sobre os índios brasileiros, exposição na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na Cidade Universitária (USP) em São Paulo, exibe diversos livros, desenhos, fotografias e objetos arqueológicos que permitem seguir o percurso da Expedição Langsdorff e principalmente o olhar de Florence, desenhista da expedição aos 21 anos, sobre cada um dos grupos indígenas com os quais ele entrou em contato. A Expedição Langsdorff, financiada pelo czar da Rússia Alexandre I, percorreu o país, do rio Tietê ao Amazonas, entre 1825 e 1829.


Após ficar mais de quatro décadas esquecido, a primeira publicação do diário da expedição escrito e desenhado por Hercule Florence se deu em 1875 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro com o título de Esboço da viagem feita pelo Sr. de Langsdorff ao Interior do Brasil, desde setembro de 1825 até março de 1829. Traduzido do francês por Alfredo Taunay, o texto e os desenhos de Florence se tornaram um clássico em suas observações, comentários e retratos sobre o Brasil do século 19. Com o título de Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas 1825-1829, o diário teve uma bela edição pela Melhoramentos em 1941, depois pela Cultrix/Edusp e uma recente pelo Senado Federal. A exposição apresenta também desenhos inéditos de um caderno de notas.


Com curadoria de Glória Kok e Francis Melvin Lee, a exposição é uma engenhosa trama entre passado e presente, distintos olhares e perspectivas, informações e interpretações, desenhos e fotografias, peças de arqueologia, mapas atuais do IBGE e páginas de diários e livros de viajantes, em edições antigas e novas. Estas peças se combinam e criam vários níveis de apreensão em uma exposição atraente, informativa e bem produzida pelos curadores. Os livros são do acervo da própria Brasiliana Guita e José Mindlin e do Instituto Hercules Florence, que, junto com a Secretaria da Cultura do Estado, o Instituto Socioambiental e o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP) são os realizadores da exposição, que pode ser visitada até 30 de julho na Cidade Universitária (ao lado do prédio da Reitoria).


As diferentes edições do relato de Florence e as outras publicações a ele relacionadas criam uma interação interessante. Com isso, os livros expostos ganham novos sentidos, deslocados das estantes das bibliotecas e compondo vitrines onde figuram ao lado de outras peças como uma produção cultural a ser olhada e interpretada da mesma forma que os artefatos indígenas ou os desenhos. Expor livros é sempre uma tarefa complexa, tanto do ponto de vista de sua materialidade como objetos como também de sua leitura, ainda mais se deixado de lado o fetiche e mostrados como parte da produção cultural de cada época.


Cada grupo indígena com o qual a expedição travou contato tem uma vitrine com três módulos distintos de textos: “O olhar de Florence”, com trechos do seu diário; “Histórico”, com uma breve história de cada povo, e “Situação Atual”, que conta a situação presente de cada povo. São os Terena, Apiaká, Bororo, Guató, Kadiwéu, Ofaé, Munduruku, Kaiapó do Sul e os Kaigang. Assim, saímos do conforto do registro do passado e nos defrontamos com o presente de sobrevivência, identidade e também de exclusão dos índios no Brasil hoje.


Pesquisador de vários meios de reprodução de escrita, imagens e sons, Florence (1804-1879) se tornaria um precursor mundial da fotografia, nos anos 1830, conforme conta Boris Kossoy em Hercules Florence. A descoberta isolada da fotografia no Brasil (Edusp). Florence também se dedicou às artes da impressão, desenvolveu a técnica da “poligrafia” e estabeleceu uma tipografia em Campinas na década de 1830.


São particularmente impressionantes os desenhos de Florence sobre os Apiaká e os Munduruku (cujo original se encontra na Academia de Ciências de São Petesburgo), com o complemento das peças do MAE-USP. Nestes desenhos se vê os índios retratados com respeito, como povo e como indivíduos e, se poderia dizer, reconhecidos como parte da mesma humanidade que o desenhista e não como um grupo à parte, em alguma visão idealizada de natureza e como “bons selvagens” ou de seres supostamente inferiores – como é tão comum em retratos coloniais e ainda nos atuais. Conforme o texto da exposição, os Apiaká, praticamente extintos no século 19, utilizaram os registros de Florence para reconstruir sua memória.


A questão indígena não está distante no tempo e tampouco no espaço. Em São Paulo, após 35 anos de luta dos Guarani, em 29 de maio passado, o ministro da Justiça finalmente assinou uma portaria que declara uma área do Pico do Jaraguá território indígena, na Aldeia Tekoa Itakupe, garantindo aos índios o direito básico de permanecer em sua terra. A reivindicação se concentra agora na demarcação da Terra Indígena Tenondé Porã no extremo sul da cidade, com campanha via internet.


Ao olharmos os desenhos dos índios de Hercules Florence, enxergamos, a partir de nós mesmos, outras possibilidades enquanto cultura e humanidade. Por que a sociedade tem tanta resistência em respeitar os direitos indígenas, cuja presença e diversidade é fundadora em nosso país? O imperativo do respeito à diversidade humana é uma questão de sobrevivência cultural e ética de todos nós (e mesmo física, dado o conhecimento, por exemplo, sobre o cultivo de milhares de espécies vegetais). O olhar de Florence, na curadoria de Glória Kok e Francis Melvin Lee, suscita assim, 200 anos depois, uma reflexão e atualidade incontornáveis.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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