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Leituras de esquerda e território do sagrado no centro de São Paulo
PublishNews, 27/07/2012
Leituras de esquerda e do sagrado

A região central da cidade de São Paulo é inesgotável em suas possibilidades de descobertas envolvendo passeios e livros, o que por vezes ocorre de forma imprevista, justapondo situações possíveis só em uma metrópole desta dimensão.

Outro dia, em visita à igreja N. Sra. da Boa Morte, na Rua do Carmo n. 202 (próxima à Sé e à Liberdade), fundada em 1810, restaurada e aberta à visitação e à oração, ao subir na torre e olhar a paisagem o que avistei em primeiro plano, curiosamente, foi uma pequena livraria situada à Rua Tabatinguera, n. 318: a Livraria Marxista!

Antes de contar da livraria... o interior da igreja vale a visita por sua bela simplicidade de um Barroco atenuado e pela atmosfera espiritual, assentada em uma história de irmandades, também afrobrasileiras, e celebrações que incluíam o território do bairro da Liberdade e procissões também em torno da forca (na atual Praça da Liberdade), de memórias de escravos condenados e outros sentenciados.

Em um quadrilátero que facilmente se percorre a pé situam-se, aliás, várias igrejas interessantes, entre elas a Santa Cruz dos Enforcados e a pequena Capela dos Aflitos, bem próximas à Praça da Liberdade. E na própria Rua Tabatinguera n. 104 fica a Capela de Santa Luzia (protetora dos olhos e da visão) em seu estilo neogótico; a igreja tem uma imagem de N. Sra da Cabeça e é impressionante a visão dos ex-votos de cabeças que a circundam.

Pois é neste espaço do sagrado e suas instituições, mas também de uma memória de exclusão e sofrimento, inclusive afropaulistana, que se deu o inusitado “encontro” entre a vista da torre da igreja e a Livraria Marxista. Ao conhecer a livraria e percorrer as suas estantes é interessante observar o resistente movimento editorial de livros de esquerda, entre os clássicos do marxismo em sucessivas reedições e obras de releitura, de diversas épocas e correntes, editadas por editoras antigas e novas, algumas comerciais e outras ligadas a movimentos políticos.

Um livro interessante e original, Edgar Carone. Leituras marxistas e outros escritos (Editora Xamã / Programa de Pós-Graduação em História Econômica do Departamento de História da USP), organizado pelos historiadores Marisa Midori Daecto e Lincoln Secco, permite conhecer a história das edições de esquerda no Brasil.

Carone (1923-2003) foi um dos mais importantes historiadores brasileiros e esta obra foi escrita em uma perspectiva que apenas recentemente ganhou peso nas ciências humanas: estudar editoras e edições, a circulação de livros, sua recepção e as formas de leitura para entender os diversos circuitos da cultura. A biblioteca de Carone (acrescida de parte do acervo de Astrojildo Pereira, adquirido em um sebo nos anos 1970) encontra-se hoje no Museu Republicano da USP em Itu, interior de São Paulo.

No artigo “A trajetória do Manifesto do Partido Comunista no Brasil”, Carone mapeia e analisa as edições brasileiras do Manifesto, editado em Londres em 1848 em alemão e com uma tiragem inicial de mil exemplares. Entre 1848 e 1919 o Manifesto teve edições em 24 países, sendo que 70 em russo e 55 em alemão.

A primeira tradução/edição no Brasil do Manifesto é de 1924 (o PCB é de 1922), a partir de uma edição francesa. Segundo Carone, Marx e Engels não eram, naquele momento, referência central no socialismo no Brasil; mais importantes eram, por exemplo, Benoit-Malon e Émile de Leveleye. Outros livros de Marx e Engels seriam publicados no País somente a partir de 1932, incluindo uma segunda edição do Manifesto, mas suas obras já circulavam em edições principalmente francesas.

Nos anos 1930 várias editoras passam a publicar livros marxistas, entre elas Pax, Cultura Brasileira, Calvino e Unitas. Após período de repressão aos livros pelo Estado-Novo, de 1942 em diante “começa a aparecer abundante literatura de guerra, com enfoque na frente russa, e ressurge a literatura marxista – reedições de Max Beer, Prokovski etc. –, o que faz com que os leitores brasileiros retomem o hábito da leitura de obras de esquerda”. Em 1945 surge novo movimento editorial, com reedições e novas edições marxistas, incluindo mais cinco diferentes edições do Manifesto (a primeira em quadrinhos é de 1979).

A partir de uma análise minuciosa de cada uma das 39 diferentes edições do Manifesto Comunista em português (o artigo é de 1991), Carone conclui que nem uma única foi realizada a partir do original em alemão, um “fato insólito”. A matriz era uma edição francesa, “fator que mostra a dependência da nossa cultura em face da francesa; ao mesmo tempo, comprova-se a nossa limitação, quando se trata das influências inglesa e, principalmente, alemã”.

Outro traço da “trajetória do Manifesto é o nosso marginal interesse editorial por edições mais cuidadas, com anotações e apêndices que ajudem o leitor”, como notas de rodapé, apêndices e prefácios. Também se constata a “inexistência de qualquer análise dessa obra por um brasileiro”, incluindo o seu significado para a esquerda brasileira: “Esse vazio é significativo do conflito entre conhecimento teórico do marxismo e conhecimento da realidade brasileira, ou melhor, da questão da práxis revolucionária”

No artigo “O Marxismo no Brasil – das origens a 1964”, Carone empreende este mesmo tipo de análise aos livros marxistas no Brasil, mapeando em detalhes as edições, traduções, circulação e leitura, e associando-as à história das ideias e das lutas sociais, tendo como marcos, por exemplo, as diferentes Internacionais. Esta perspectiva é enriquecedora por avançar na compreensão da história cultural e social ao se perguntar quem edita e traduz, como e onde os livros circulam, quem trabalha nestes circuitos, quem os lê, como os lê e assim por diante. Ou, neste caso, questões específicas sobre o que liam os trabalhadores brasileiros e qual o papel do PCB na direção de leituras de caráter social na época de sua fundação e formação de seus quadros nos anos 1920.

Outros artigos da coletânea, “A Coleção Azul” e “Notícias sobre ´Brasilianas´” enfocam também um movimento editorial a partir da Revolução de 1930 e a edição de obras e coleções conservadoras, analisando o lançamento destes títulos e seu enfoque analítico em um contexto de transformação social do País. O livro tem ainda um depoimento de Carone sobre sua formação e suas leituras, concedido aos organizadores Marisa Midori Daecto e Lincoln Secco.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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