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A biblioteca do tabelião Jerônimo e a provisão de sonhos
PublishNews, 13/05/2011
A biblioteca do tabelião Jerônimo

“Diariamente, percorrendo a Ladeira da Matriz, demorava-me em frente do cartório dele, enfiava os olhos famintos pela janela, via numa estante, em fileiras densas, bonitas encadernações de cores vivas. (...) Eu precisava ler, não os compêndios escolares, insossos, mas aventuras, justiça, amor, vinganças, coisas até então desconhecidas. Em falta disso, agarrava-me a jornais e almanaques, decifrava as efemérides e anedotas das folhinhas. Esses retalhos me excitavam o desejo, que se ia transformando em idéia fixa”.

Mas onde conseguir livros? Como adquiri-los? Havia as bibliotecas do Dr. Mota Lima, do Professor Rijo, do Padre Loureiro e a do tabelião Jerônimo Barreto, mais próximo, conta Graciliano Ramos no belíssimo conto “Jerônimo Barreto”, em Infância (Record, 1981). O escritor conta a sua fascinação de menino pelos livros, pelas estantes repletas de histórias e pelas bibliotecas – os livros como fresta de acesso às narrativas e à descoberta do mundo e suas coisas desconhecidas.

Graciliano se lembra de sua timidez, da angústia ao subir cada lance da escada até a biblioteca do tabelião, imaginando coragem para pedir um volume emprestado. “Assegurei que não dobraria as folhas, não as estragaria com saliva”, escreve ele, e, assim, o primeiro volume retirado foi O Guarani, de José de Alencar. Depois vieram as descobertas de Joaquim Manuel de Macedo, Júlio Verne (sempre ele!) e Ponson Du Terrail.

“Em poucos meses li a biblioteca de Jerônimo Barreto. Mudei hábitos e linguagem. Minha mãe notou as modificações com impaciência”, conta Graciliano, lembrando a sensação de que as pessoas próximas evaporavam: “A única pessoa real e próxima era Jerônimo Barreto, que me fornecia a provisão de sonhos, me falava na poeira de Ajácio, no trono de S. Luís, em Robespiere, em Marat”.

Eu relia este conto de Infância, quando me deparei com um artigo do crítico literário Alcir Pécora, publicado em O Globo e reproduzido pelo Publishnews, no qual escreve que “o campo literário se encontra hoje numa situação de crise, observável pela relativa perda da capacidade cultural da literatura de se mostrar relevante, não apenas para mim, mas para muitos que estão comprometidos com a cultura: como se alguma coisa se introduzisse nela (sem eventos violentos) e a tornasse inofensiva, doméstica. Um vírus de irrelevância, por assim dizer.”

Nada, portanto, de “aventuras, justiça, amor, vinganças e coisas desconhecidas” das descobertas de Graciliano... Mas que crise de expressão seria essa? Um dos caminhos de resposta está, nas palavras de Pécora, na “impressionante expansão das narrativas no cerne da própria existência. Antes mesmo de existir como evento, a ação já se apresenta como narrativa, como ocorre nos realities shows, em que as pessoas, antes de agir, representam ou narram a ação que lhes cabe. Ocorre também na multidão que fala pelos blogs e pelas redes sociais, ou se monitoram pelos celulares, de modo que a ação ou a conversa é sempre exibição/narração da conversa. É como se o mundo inteiro fosse virtualidade narrativa antes de ser existência particular, e principalmente como se todo mundo fosse interessante o bastante para ser visto/lido. Esse é um dos pontos não negligenciáveis que parecem retirar a prioridade ou a exclusividade da narração do narrador literário. É um problema basicamente de inflação simbólica.”

Em seu texto, Pécora propõe uma interessante discussão sobre os rumos da literatura contemporânea, mas me fixei em uma pequena parte de sua crítica, absorvido pela leitura de Graciliano Ramos, especialmente quando ele escreve que, diante da atual crise literária, é como se o presente se absolutizasse e não mais admitisse um legado cultural como patamar exigente de rigor para a sua produção; sem história, tudo parece igualmente válido, como se a literatura e os realities shows pairassem em uma mesma suspensão virtual.

A estante de livros do tabelião Jerônimo Barreto não era a antecessora das “bibliotecas” virtuais. Mais que frestas de entrada no fantástico mundo das narrativas, as bibliotecas têm sido o testemunho de que vivemos imersos no tempo histórico, de que somos parte de uma história social e coletiva com espessura temporal, que existiu vida antes de nós e assim sucederá. A biblioteca impõe certa humildade e enriquece nossas vidas com a experiência e a aventura dos que vieram antes de nós, já que não estamos numa sobra virtual do tempo, eternizado na onipresença e onipotência de um instante do qual parecemos donos absolutos e únicos.

O mundo virtual torna cada vez mais incômodos o peso e a presença física do livro, das estantes e das bibliotecas. Os “olhos famintos” de Graciliano Ramos que viam a estante pela janela, sedentos de aventuras, justiça, amor, vinganças e coisas desconhecidas, dizem respeito sobretudo a uma atitude de curiosidade, descoberta e valorização da experiência social.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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