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Leitura e postura
PublishNews, 09/12/2014
Leitura e postura

Alguns anos atrás, o professor Ítalo Moriconi, em uma mesa redonda no Itaú Cultura, lembrou que o aprendizado da leitura inclui também o aprendizado social da postura, ou das posturas de leitura. Ler é uma necessidade social, não tem nada de “natural” nisso, e por isso mesmo temos que aprender. E, ao aprender a ler, somos forçados a aprender determinadas posturas associadas a esse ato. Como segurar um livro, jornal ou revista, por exemplo. E que não é viável ler de cabeça para baixo (nem o livro, nem com o leitor de cabeça para baixo), já que isso entra no domínio das habilidades circenses.


Quem já assistiu aulas de alfabetização de adultos – e falo especialmente desses belos esforços de ensinar pessoas já velhas a ler – percebe claramente a dificuldade que essas pessoas demonstram para segurar um livro, pegar em um lápis. Nós aprendemos essas posturas da mesma forma como aprendemos muitas outras regrais sociais e normas de comportamento, desde a primeira infância.

Essa questão da postura, principalmente em acontecimentos públicos, assim como a distância física que deve ser mantida entre as pessoas é tema bem conhecido dos antropólogos, mas não vem ao caso aqui.

O caso aqui é que, há um ano e meio, um amigo do meu filho, que também conheço há muitos anos, chamou minha atenção, dizendo que eu estava andando e ficando parado de modo muito curvado. Ainda pensei em dizer que era o peso da idade, mas ele falava a sério. Pediu que eu fosse à clínica que tem com um amigo para uma avaliação da postura e do que poderia ser feito. Eles trabalhavam também com isso.

Tratava-se do Alexandre Blass, que é professor de educação física, e seu amigo é o Marcelo Semiatzh. Os dois são especialistas em corrigir posturas e treinos específicos para atletas de alto rendimento. Eu não sou atleta, muito menos de alto rendimento, mas eles começavam, naquela época, a trabalhar com pequenos grupos de pessoas para desenvolver esse processo de correção de posturas e exercícios, que eles chamam de “Força Dinâmica”.

Como tudo no mundo acaba em livro, os dois acabaram de lançar o deles, chamado precisamente Força dinâmica – Postura em movimento, no qual explicam o método e orientam os leitores. Um ponto alto do livro são seus capítulos introdutórios, que revelam uma cultura humanística e uma fluência de escrita que não são muito esperadas em treinadores de atletas.

O livro começa, por exemplo, com uma descrição semi fantasiosa, que mistura fatos e imaginação, do processo da descoberta da Lei da Gravidade, por Sir Isaac Newton e na qual Newton, ao despertar, examina seus chinelos e constata que um dos pés estava mais gasto que o outro. Bom, a historinha do Newton pode ser imaginada, mas Fernando Pessoa também notou o mesmo fenômeno nos seus chinelos, no “ivro do desassossego. Diz o poeta: “Passeava de um lado ao outro do quarto e sonhava ali coisas sem nexo nem possibilidades... Os meus chinelos velhos estavam rotos, principalmente o do pé esquerdo... eu fazia a avenida do meu quarto curto em passos largos e decididos, cumprindo com o devaneio inútil um sonho igual aos de toda gente”.

A partir da situação imaginada do cientista e a relatada pelo poeta, os dois explicam o quanto o caminhar, “exigência básica do dia a dia, representa uma das atividades humanas mais universais e complexas – habilidade motora que depende de vários comandos interligados do cérebro para os motoneurônios”. De Fernando Pessoa os dois passam a lembrar o jesuíta Anchieta, que sofria de grave escoliose ao chegar ao Brasil, fruto da adolescência em bibliotecas, certamente em posição incômoda, e de como o padre se aliviava caminhando descalço pelas areias das praias.

Os dois autores dizem que “enviamos um robô a marte, mas ainda não aprendemos a caminhar corretamente”. Ou melhor dizendo, perdemos técnicas e posturas desenvolvidas por populações nômades, ou que tinham longas caminhadas no seu cotidiano, como os nossos índios, e que podemos modificar e aprimorar o modo de nos movermos sobre a terra.

Sérgio Buarque de Hollanda, também citado pelos autores, mostrava uma capacidade de observação muito interessante sobre o assunto, fruto também de suas pesquisas sobre a formação do Brasil. Diz o historiador, em Caminhos e fronteiras que “enquanto os brancos, por disposição natural ou por educação, costumam caminhar voltando para fora a extremidade de cada pé, o índio caminha [...] com os pés para frente [...] A planta e os dedos do pé aplicam-se inteiramente no solo, porque todo o peso do indivíduo recai sobre o conjunto de maneira uniforme, ao passo que entre os brancos o polegar suporta um peso desproporcionalmente maior... Nenhuma junta desenvolve mais trabalho do que as outras, nenhuma parte sofre mais cansaço que as demais e assim – viribus unitis – tornam-se possíveis percursos mais extensos”.(Forças Unidas, para quem não estudou latim).

O Marcelo Semiatzh me examinou, fazendo que eu andasse e ficasse parado em pé enquanto ele observava. Destacou de imediato vários erros de postura, cujos reflexos inclusive começavam a me incomodar no braço. Sim, a postura se refletia no braço, também.

A questão era: é possível “reaprender” a caminhar a desenvolver a postura correta? Para os dois professores, a resposta é afirmativa. Mesmo pessoas de mais idade, com décadas de maus hábitos posturais, podem reaprender isso tudo, e por uma razão bem simples: ao reaprender, com os exercícios corretos, aliviam dores e queixumes que há muito incomodavam. O resultado, relativamente rápido, ajuda a recuperar mobilidade, flexibilidade e resulta em uma melhora geral do bem-estar corporal.

Há muitos anos fui convencido da necessidade de melhorar meu condicionamento físico para enfrentar as vicissitudes da vida, e caminho e faço ginástica pelo menos duas vezes por semana. Detesto, confesso. Faço porque já me convenci de que são atividades necessárias para manter um nível razoável de bem-estar físico. Detesto essas academias barulhentas em que a pulação aeróbica se mistura com músicas horrorosas, para meu gosto, tocada em altos decibéis. Fiz muitos anos ginástica em uma academia que trabalhava com aparelhos.

Agora, faço exercícios os de postura da Força Dinâmica. E sinto que me exercito muito mais do que quando usava aparelhos.

Quando conto essas histórias para algumas pessoas, algumas frequentadoras de academias e atentas aos benefícios do exercício para a saúde geral, há sempre uma reação meio incrédula. Postura? Caminhar? Aprender a ficar em pé corretamente? Entender os movimentos que os membros do corpo fazem para se movimentar, sentar, correr?

Sim, respondo. E também para ler melhor.

O livro dos meus dois amigos, com fotos ilustrativas de um excelente fotógrafo chamado José Gabriel Lindoso, ajuda muito. Continuo detestando fazer ginástica, mas faço agora com uma compreensão muito melhor de como isso tudo tem implicações fisiológicas. Os problemas são decorrentes do modo como vivemos, do sedentarismo e da incompreensão de como funciona nosso corpo. Nada de receitas: explicações.

E o engraçado é que agora, quando ando pelas ruas, tendo a observar o modo de caminhar das pessoas e vez em quando me dá vontade de cutucar o sujeito, ou a sujeita, e avisar: “Olhe, você está cultivando uma bela escoliose e muitas dores nas costas andando desse jeito”.

Lendo, andando e aprendendo.

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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