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Moacyr Scliar: literatura, leitura e medicina
PublishNews, Suzana Vargas, 05/12/2022
Em novo artigo, Suzana Vargas fala sobre sua amizade com Moacyr e como o autor a inspirou de diversas maneiras

Essa memória conta sobre uma grande inspiração que acabou (e ainda não cessou) de nortear minha atividade em favor da literatura, da leitura e de mais leitores para um mercado editorial quase sempre à deriva, dependente do lado para onde os ventos sopram. E tem a ver com Moacyr Scliar a quem conheci como autor ainda cursando a Faculdade de Letras. Seus textos estão na raiz das aulas que ministrava para jovens de 5ª a 8ª séries e, mais tarde, no ensino médio. Continuei a lê-lo e a adotar seus livros quando já lecionava no nível universitário.

Sua literatura me chamava a atenção pela leveza e ao mesmo tempo densidade, pelo humor frequentemente escondido atrás de descrições e diálogos e também por nos mostrar seu comprometimento com uma realidade sobre a qual pouco falávamos: os judeus e sua história. Pessoalmente, porém, eu o encontrei em 86, numa das minhas idas anuais a Porto Alegre, apresentando-me como sua leitora e escritora estreante. Ele morava no bairro Santa Cecília e a casa tinha um jardim na frente e nos fundos, algumas paredes de tijolinhos, uma sala ampla. Lembro de haver livros até nos corredores. Não ficam claros para mim os dados objetivos dessa visita. Lembro, sim, da alegria e cordialidade enorme dos anfitriões: dele e de Judith, sua parceira. A visita não chegou a ser demorada, mas me impulsionou para sempre na atividade que há poucos anos eu havia iniciado: dar aulas e formar leitores.

Moacir fala para crianças da escola pública na Bienal do Livro Rio, espaço FNDE
Moacir fala para crianças da escola pública na Bienal do Livro Rio, espaço FNDE
Explicando melhor: eu vinha de uma experiência frustrada na coordenação dos Clubes de Leitura do MEC, tentativa que Eduardo Portella fez, quando foi Ministro de Educação e Cultura através de um órgão por ele criado: o PRODELIVRO. E por que havia sido frustrada a tentativa? Porque quando estávamos com o projeto pronto para decolar e implantar Clubes de Leitura em todas (ou quase todas) as cidades brasileiras, o Ministro foi demitido.

Mas, vocês estarão se perguntando, o que teria a ver esse projeto frustrado com a visita à casa de Moacyr? Tem a ver com a breve conversa que tivemos e que gerou uma das minhas convicções mais profundas: se a leitura não atravessar o nosso cotidiano de trabalho e estudo em todas as fases da vida, jamais seremos um país de leitores. Na verdade, não seriam os clubes, as rodas, as histórias em contação que formariam leitores. Essas seriam atividades sociais, artísticas de grande estímulo à leitura, altamente inspiradoras, estratégicas, mas que não a colocariam no centro da questão educacional, pelo menos no caso brasileiro. A leitura não deveria ser uma excepcionalidade, um evento, uma opção apenas deste ou daquele professor. Deveria estar incrustrada nos currículos como a primeira e principal atividade, pois, na verdade, comanda todas as outras.

Naquela noite pude ouvir de um escritor da minha admiração que ele não havia escolhido fazer medicina, mas que a medicina o havia escolhido. “Assim também nasceu o escritor, guriazinha, (era o rei dos diminutivos carinhosos). Só me formei em Medicina porque lia muito e só fui capaz de escrever porque conheci a outra dimensão da realidade que é a dor humana. Só quem lê muito, afina sua sensibilidade e pode cuidar de outro ser humano, esteja em que profissão estiver”.

Uma primeiras Rodas de Leitura internacionais do CCBB. Moacyr ao lado de Zoé Valdés, autora cubana.
Uma primeiras Rodas de Leitura internacionais do CCBB. Moacyr ao lado de Zoé Valdés, autora cubana.
Naquele momento, eu - que andava às voltas com minha tese de mestrado cujo tema era a leitura – vislumbrei algumas ações que poderiam, talvez, transformar estudantes em leitores. E não eram exatamente rodas de leitura, atividade que já desenvolvia nas aulas e mais tarde virariam projetos. Com sua observação/declaração que beirava o casual, seu jeito calmo, com um vocabulário que incluía o, “mas tchê, guria”, ele iluminara um caminho.

Se tivesse de descrevê-lo fisicamente, talvez faltassem dados objetivos, a não ser pelos olhos verdes, uma calvície acentuada, a barba mais farta e russa ou alourada, o rosto comprido e delicado e uma elegância ímpar. E quando digo elegância, falo não somente da roupa, da esbeltez, mas do gestual, da cordialidade, da simpatia. Naquele primeiro de muitos encontros com Moacyr esses traços ficaram marcados para sempre.

E não foram poucas as ocasiões de convivência quase íntima, digamos (ele sabia se fazer íntimo da gente). Primeiro, porque não sabia dizer não. Aceitava os convites que como curadora ou produtora cultural eu lhe fazia. Desta forma viajamos o país com meus projetos, entre feiras e bienais. Tivemos a ocasião, inclusive, de viajar para a Alemanha, já como autores convidados da Feira de Frankfurt, dedicada à literatura brasileira em 1994. Entre as lembranças mais engraçadas daquele momento está uma viagem que fizemos juntos a Oldemburg (os autores saíam em dupla). Os dois sem falar uma palavra de alemão e as pessoas do lugar sem saber falar inglês (nossa única forma de comunicação). A dificuldade que foi numa das paradas do trem para pedir um garfo e uma faca beirou o cômico e essa lembrança permaneceu para as nossas memórias futuras.

Voltando às questões de leitura, tive oportunidades inúmeras de trocar impressões sobre o assunto com ele, mas as palavras daquela primeira noite permaneceram em mim e me permitiram projetar algo que talvez pudesse ser a solução para a educação, para a cultura, para o mercado de livros. Já já explico.

Moacir em Berlim e Judith, sua mulher, de verde
Moacir em Berlim e Judith, sua mulher, de verde
Nessa projeção que comecei a alimentar desde aquela época, estava a criação de uma cadeira de leitura nas escolas que substituísse as aulas de gramática e sintaxe, as famosas aulas de língua portuguesa, dado que as crianças muito pequenas ainda não conhecem o código linguístico. A linguagem e sua organização ainda são instâncias abstratas para o intelecto infantil. A cadeira de leitura e de escrita seria uma etapa de conhecimento da língua, de aquisição de vocabulário, de aprendizagem da sua estrutura, com suas vírgulas e pausas e sujeitos e predicados. Sem, entretanto, nomeá-los. Essa cadeira de leitura acompanharia o indivíduo do Fundamental à Universidade (cursasse ele engenharia ou letras ou, mesmo, medicina). A leitura passaria a integrar os hábitos e o cotidiano dos cidadãos. Comprar um livro ou frequentar uma biblioteca faria parte da rotina de crianças, jovens e adultos. Essas atividades estariam integradas aos usos e costumes da nação.

As aulas de gramática e sintaxe (sem jamais retirar a sua importância) poderiam ser desenvolvidas, em um semestre ou dois apenas, já que saber a diferença entre adjunto e complemento nominal talvez sirva para poucas coisas na nossa vida profissional, o mesmo não ocorrendo com a leitura e a escrita. Mais de uma vez, em algumas das viagens falei com meu amigo sobre isso, assim como até hoje defendo quando me pedem para falar sobre estímulos à leitura ou sobre analfabetismo funcional.

Desse ponto de vista, um médico ou um advogado seriam submetidos (por que não?) à leitura de um Dostoievski, Kafka, Machado de Assis ou Fernando Pessoa. Com certeza dali sairiam melhores profissionais, mais humanos, com mais compaixão pela dor alheia, com outro olhar para o próprio mètier. Isso tudo eu havia conseguido compreender naquela longínqua noite de 1986. As palavras de Moacyr ressoavam sempre em meus ouvidos “só fui capaz de escrever porque conheci a outra dimensão da realidade que é a dor humana”. E “quem lê afina a sensibilidade, talvez tenha condições de cuidar melhor dos outros, esteja em que profissão estiver”.

Sempre que me lembro de dele, não me vem à cabeça exatamente aquele autor-referência, com uma produção literária imensa (mais de 70 livros) entre contos, romances, novelas, ensaios, crônicas, literatura juvenil. Adaptações para cinema e teatro estão nesse currículo que inclui alguns Jabutis e outros prêmios como o Casa de las Américas, traduções para diversas línguas entre elas o tcheco e o norueguês. E um lugar na Academia Brasileira de Letras (ABL). Estranhamente penso naquele médico/ escritor de estilo altamente humanista e valores universais que me recebeu quando eu estava florescendo para uma vida dedicada à literatura e leitura para a qual suas palavras, mesmo sem que ele soubesse, me prepararam. Penso ainda em outras atividades que ele exerceu, por exemplo, como professor na Faculdade Católica de Medicina ou como Secretário Estadual de Saúde.

Todos esses elementos compõem um Moacyr (ou Mico para os íntimos) que não se furtava a dar aulas, na Estação das Letras, espaço das minhas lembranças particulares (hoje totalmente virtual) onde deixava a pequena mala que costumava carregar e escrevia suas crônicas na salinha do andar de cima da livraria, enquanto esperava seus alunos chegarem. Aproveitava suas vindas quase mensais à ABL para colaborar conosco. Tudo nele fazia jus à sua filosofia de vida, creio: leveza e responsabilidade. E uma disciplina quase feroz (com o corpo/com a mente). Estarei certa, Judith? Pergunto nesse momento à sua viúva e amiga querida, pois Moacyr nos deixou quase repentinamente em fevereiro de 2011, quando pela primeira vez não pode participar de uma Bienal para a qual eu o havia convidado. Saiu quase à francesa levado por um acidente vascular cerebral.

Deixou plantada em mim essa obsessão que depende de tantas coisas, inclusive de vontade política: liberar nossas crianças e jovens da submissão a 11 anos de gramática e sintaxe e mergulhar corações e mentes na leitura (não na história da literatura ou na sua teoria) de textos literários ou não. Talvez seja uma utopia, já que hoje existem leis e movimentos importantes nessa direção, como a Lei Castilho, mas não custa expressar o sonho de termos um país de leitores e como consequência um mercado editorial pujante. Um país onde essa atividade não ficasse restrita às faculdades de Letras ou, quando muito, à área de humanas. Ou, mesmo ás compras governamentais tantas vezes descontinuadas.

Sim. Um médico precisa ser um bom leitor, um arquiteto precisa saber pensar mais humanamente os espaços, um empresário também. Por que a uma determinada altura separamos a ciência das artes e da filosofia? Talvez uma leitura atenta da obra de Moacyr dê conta da resposta. Ao final dessa memória, separei dois textos que podem nos recordar a excepcionalidade de seu trabalho por onde quer que cruzasse. Um deles tirado de A estranha nação de Rafael Mendes e outro onde sua Porto Alegre (que costumava buscar qualquer lugar do mundo onde estivesse) aparece como protagonista de uma história de amor ou desamor: História porto-alegrense, retirado do livro O anão no televisor (1979), republicada em Porto de Histórias, mas que faz parte de muitas antologias escolares e foi um dos motivos da minha tese de mestrado.

Moacyr Scliar faz falta porque aponta sempre para essa possibilidade de diálogo, com uma produção literária que traz à cena de modo fantástico ou direto as complexidades dos dilemas urbanos do país, cotidianamente desafiado pela desigualdade, pela injustiça e por sua eterna possibilidade de alegria e paz.

Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.

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