A cabeça do editor do século 21: a angústia do jogador
PublishNews, Rogério Alves*, 17/01/2017
Em artigo, Rogério Alves fala sobre a angustiante busca pelo best-seller e conclui: 'absorvendo tudo', o editor 'aprende a deixar o gosto pessoal de lado para publicar o que as pessoas querem ler'

“Sabemos fazer, agora precisamos de sorte. Boa sorte a todos”. As reuniões corporativas anuais de editores europeus e latino-americanos terminavam sempre com essa frase. Dita pelo CEO de um dos maiores grupos editoriais do mundo, pode soar estranha ou até supersticiosa. O efeito era um só: ela nos angustiava. Depois de dias fechados em um escritório discutindo títulos, autores, números e tendências de mercado, o “boa sorte” nos abandonava de cara na sarjeta da realidade: o editor é um jogador.

Editar é apostar. Uma aposta depois da outra, cinco, dez apostas por mês. O cotidiano da equipe de edição de livros comerciais para o varejo, os chamados “livros trade”, combina conhecimento técnico / racional (de fabricação do produto) com uma dose de intuição. Talvez mais intuição que conhecimento técnico. Intuição, que fique claro, mercadológica.

Como bom gerente de produtos (leia o texto A cabeça do editor do século 21: cadê o glamour?), o editor de trade quer ver seus livros nas listas de mais vendidos. Quer que as pessoas os carreguem no metrô e se divirtam com o que leem. Quer descobrir o novo hit. Quer fazer a diferença. Quer liderar o mercado. Já há algum tempo, as grandes casas editoriais não podem se dar ao luxo de formar um catálogo apenas com nomes estrelados da literatura ou com promessas das letras. Por mais difícil que seja aceitar isso, o sustento das estruturas vem mesmo dos best-sellers.

Chris Anderson tratou deste tema no livro A cauda longa, segundo o qual o mercado é capaz de consumir todos os tipos de produtos, já que existe uma longa cauda formada de nichos. Neste sentido, o mercado seria quase infinito, uma vez que os interesses são infinitos. O autor não especificou o volume dessas vendas no caso do mercado editorial e o futuro das grandes corporações editoriais. Há editoras, claro, que conseguem viver apenas dos nichos, e devemos celebrar isso. É bom para todos. Mas mesmo elas querem emplacar o hit, afinal de contas, passar dois ou três anos na lista de mais vendidos é quase que uma garantia de sobrevivência. E não se engane, existem nichos e nichos.

Hoje, as estatísticas do mercado editorial mostram que as grandes editoras se mantêm com um número que varia de 10% a 20% dos títulos que publicam. Os demais possuem uma venda baixa, cujas receitas não seriam suficientes para manter as empresas, ou são fracassos retumbantes, que tiram o sono de qualquer jogador.

A busca pelos títulos que possuem potencial para se tornarem best-sellers é tortuosa, cheia de blefes, atalhos e ferramentas. Não existe fórmula, apesar das várias publicações que prometem revelar os segredos do hit. O jogo começa pela informação. Funcionando como uma espécie de antena, a cabeça do editor-jogador acompanha as tendências mundiais nas feiras e nas conversas com colegas, devora os relatórios dos scouts espalhados ao redor do mundo, consome artigos da imprensa, assiste televisão, cinema, YouTube, participa de redes sociais, viaja e ouve, ouve muito a equipe comercial, as pessoas na rua, a família…

Absorvendo tudo, aprende a deixar o gosto pessoal de lado para publicar o que as pessoas querem ler. Ou, pelo menos, o que parece que as pessoas desejam. Com a popularização do livro digital há alguns anos, o mundo editorial vibrou com a possibilidade de ter dados precisos sobre a leitura de um livro específico, como, por exemplo, saber o trecho que prende ou que afasta leitores. Entender o comportamento dos consumidores diretamente na fonte prometia uma revolução. E ainda promete. Da mesma forma, as mais recentes metodologias de trabalho dos cientistas de dados prometem mudar o varejo para sempre.

O jogador comemora, pois quanto mais dados possuir, mais análises e cruzamentos conseguir fazer, mais refinada será a sua aposta. Mas nada tirará o fator humano das decisões; nem aliviará a angústia de colocar as fichas em determinado título, por mais embasamento racional que tenha servido para sua escolha.

É conhecida a clássica história das várias recusas dos editores que puderam ler os originais do primeiro Harry Potter. Algum dado ou tendência indicava que a história do bruxinho seria um hit? Nada. O mesmo aconteceu recentemente com a série Cinquenta tons de cinza, de E.L. James. O agente da obra me disse que ele mesmo não sabia que possuía um best-seller daquele tamanho na mão. E quem saberia? Ninguém. Os editores das obras resolveram apostar. Baseados em quê? Intuição, informação e análise do produto. Apostaram corajosamente, ganharam a partida. São grandes jogadores. E, claro, têm muita sorte.

Derek Thompson, em Hit makers (Penguin Press, no prelo), diz que a aposta já nasce como um fracasso. Segundo ele, o mercado editorial está entre os mais difíceis da indústria de entretenimento, ficando atrás dos mercados de apps e do cinema: 20% dos filmes são responsáveis por 80% da bilheteria, enquanto 60% do faturamento de uma loja de apps vêm de apenas 0,005% das empresas produtoras.

Apostar – e sua angústia – faz parte do cotidiano do editor. Em meio a muitas teorias e análises, o editor segue apostando. Busca dados, acompanha tendências, escolhe a obra, depois faz o trabalho de gerente de produtos (olhe os 4Ps do Marketing aqui!) e, por fim, precisa contagiar a empresa inteira. Todos do time precisam acreditar tanto quanto o jogador. O editor-jogador é um ser coletivo, não consegue apostar sozinho. Se não possuir apoio da equipe comercial, do marketing e dos gestores, por mais que o produto represente uma tendência e faça sucesso no exterior, morrerá empoeirado nas estantes ou, pior, nos estoques. A verdade é que muitos produtos teriam carreiras diversas se publicados em casas editoriais diferentes.

O jogo coletivo da edição é também angustiante, mas as apostas precisam continuar. Neste cassino, não se para nunca. E, o pior, as peças com que se joga estão sempre mudando. Qualquer prática para racionalizar as apostas é bem-vinda. O fator humano vai ser sempre importante, mesmo porque as fórmulas ou produtos construídos artificialmente não possuem vida longa. Acompanhe as apostas e veja por você mesmo. Enquanto isso, o jogador profissional segue administrando sua angústia como pode e se alimentando dela, viciado abertamente na adrenalina do jogo.


* Rogério Alves é gerente de Educação Superior e Trade da Saraiva / Somos Educação. Doutor em Teoria Literária (USP) e Administrador de Empresas (FGV), já passou pelo Grupo Planeta, Fundação Padre Anchieta e Folha de S.Paulo.

[17/01/2017 10:43:00]