Editora de mentirinha: como naufragar no mercado, fazer sucesso com as crianças e ser feliz
PublishNews, João Paulo Charleaux, especial para o PublishNews, 23/05/2011
No Chile, duas amigas preparam artesanalmente cada um dos livros que vendem

Nenhum indicador sério prova que esta seja uma empresa de sucesso. A Libros del Snark, de Santiago do Chile, debutou há cinco meses com O livro do duende Raúl, numa tiragem de apenas 60 exemplares. Faturou R$ 3,5 mil e nem quis fazer mais. Não pagou os direitos de autor do primeiro romance, o duende, que sumiu entre as tábuas do piso onde funciona a editora. E, apesar do lucro parco, as donas da editora ignoraram os inúmeros pedidos de leitores do Chile e do exterior e preferiram parar para descansar. A Libros del Snark é o melhor exemplo de como não conduzir um negócio. E ser feliz.

Diz o site que a ideia de fundar uma editora de livros infantis feitos a mão "remonta uma conversa entre a escritoria María José Ferrada e a ilustradora Francisca Yáñez num café de Helsinki, na primavera de 1847". A improvável e fascinante editora não quer ser exemplo para ninguém, nem lidera nenhuma campanha contra as grandes empresas do ramo. María e Francisca, as donas do negócio, só querem fazer livros bonitos. E sem pressa.

"María nasceu em Temuco, no sul do Chile, mas mente a seus amigos e fala que nasceu no Japão", diz o início do currículo desta escritora e jornalista que viveu no Panamá, na Espanha e no Japão, é professora de literatura e cultura japonesa em Santiago e, com 34 anos, coleciona uma meia dúzia de prêmios nacionais por seus livros infantis.

Francisca, a sócia de María, tem 40 anos, nasceu em Santiago, mas os pais dela se exilaram na Alemanha e na Costa Rica durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Por isso, "Francisca tem um sotaque meio estranho", diz o curriculum da ilustradora que trabalhou para o Museu de Arte Contemporânea de Santiago até o mês passado e agora "desenha no espelho do banheiro e nos guardanapos que encontra nos cafés da cidade". (Só uma artista muito segura de si ousaria se descrever assim. A verdadeira Francisca pode ser vista aqui.

As duas amigas dizem que os livros desta editora podem ser encontrados nos melhores circos, barbearias e verdurarias do país. Mas não é verdade. As tiragens de menos de cem exemplares acabam rápido demais.

A aventura quase imaginária começou com O livro do Duende Raúl – 60 exemplares feitos a mão e vendidos a pouco menos de R$ 50 cada um. O livro é de um duende mesmo e, por isso, só pode ser lido com a lupa que vem na caixa. A produção artesanal foi feita sob estrita orientação da artista plástica japonesa Motoko Toda, de 32 anos, que no fim do ano passado deixou o emprego numa fábrica de macarrão em Kyoto para ensinar María e Francisca a produzir livros artesanais com a técnica milenar do mame-hon (livro legume).

O sucesso da publicação do duende foi enorme e a baixa tiragem criou uma demanda reprimida no mercado de livros infantis, motivando uma nova aventura. O segundo livro, chamado As visões fantásticas, só foi possível por um acaso. A publicação "apareceu um dia debaixo de uma árvore nas proximidades da editora. Nao sabíamos se se tratava de um livro ou de uma estranha fruta, mas decidimos levá-lo às livrarias", brincam as donas da ideia.

As visões fantásticas vem acompanhado por estes objetos antigos usados para ver fotografias minúsculas contra a luz, que sequer têm um nome conhecido da maioria das pessoas, se é que nome tem. O livro é, na verdade, uma caixa, dentro da qual as artistas construíram um mundo minúsculo, um jardim habitado pelo cidadão que pode ser visto no porta-retrato de cinco centímetros que acompanha a obra. "Devido a que, no mundo, só existem 30 visores como este, a edição é de 30 exemplares". Simples assim.

Nada tão lindo pode ser para valer, diz o juízo comum. E custa crer que ainda há espaço para ser eficiente sem ser grave num mundo que carece, é verdade, de réguas corretas para medir o sucesso de projetos assim. A Libros del Snark não é de brincadeira, mas diverte. Fala a língua das crianças também quando se dirige aos adultos e não se deixa julgar por livro-caixa, propaganda e ranking de vendas.

Por que você faz isso? "Não sei", responde Francisca, com a sinceridade de uma criança. "É um gesto político também, de defender o valor do artesanal contra o monstro do mercado editorial, que reproduz livros como quem faz sapatos em série, pagando uma miséria para escritores e ilustradores infantis", cede María. "Defendo o gosto pela leitura de uma boa história que pretende não ensinar nada e isso não interessa à maioria dos ditos educadores de hoje".

Se tivessem parado para pensar nas razões do que fazem, María e Francisca talvez nem tivessem fundado a editora. No Chile, o grosso do mercado editorial de livros infantis está atrelado às compras feitas pelo Ministério da Educação e pelos colégios privados. O "sistema" prefere livros que dizem às criancas como elas devem se comportar, ou o que é bonito fazer. Livros que brotam em árvores e autoras que "mentem" o tempo todo não se encaixam nesse padrão. Mas estão fazendo um sucesso danado no varejo.

Livros de origami

O último lançamento da editora, O livro dos mil tsuru, nasceu há mais ou menos dois meses, depois que María postou em sua página no Facebook um comentário sobre o terremoto ocorrido no Japão. Ela se lembrou de uma antiga lenda japonesa sobre as dobraduras em forma de pássaro, os tsuru. Diz a história que qualquer pessoa que faça mil origamis como este conseguirá ter um desejo realizado. Inspirada na lenda, María começou a fazer tsuru para enviar a algumas escolas do Japão. "O que eu poderia enviar para um país que tem de tudo?", perguntou María.

Em uma semana, ela foi inundada por centenas de origamis enviados por pessoas de todo o Chile. Os leitores foram se interando da iniciativa de María através dos posts. A maioria das dobraduras tinha sido feita por crianças chilenas que viveram um terremoto e um tsunami semelhantes aos do Japão, exatamente um ano antes. Hoje, são quatro mil tsurus nas mãos da escritora, que serão enviados ao Japão com ajuda do Ministério das Relações Exteriores do Chile.

O livro dos mil tsuru conta o caso de um tsuru que queria levar um abraço para as crianças do Japão. Como o presente é pesado demais para ser levado sozinho, a ave pede ajuda de outras dobraduras. Juntas, os mil tsurus conseguirão levar o abraço ao Japão e realizar um pedido dos sobreviventes do terremoto. O livro que conta esta história já está pronto e será distribuído em escolas dos dois países este ano.

Num ramo vaidoso, onde todos querem deixar uma marca, a Libros del Snark aposta no efêmero e se contenta em existir por um breve momento, na mão de poucos leitores. Pode não ser a receita do sucesso editorial, mas que tipo de sucesso realmente interessa aos que veem nos livros uma forma de reconectar-se com o belo?

[23/05/2011 00:00:00]