Escolas de samba apresentam enredos inspirados em livros no Carnaval 2024
PublishNews, Beatriz Sardinha, 24/01/2024
​Em 2024, Portela e a Grande Rio fazem em seus enredos adaptações de obras literárias contemporâneas; Imperatriz, Porto da Pedra e Salgueiro também trazem inspirações na literatura

Não é de hoje que literatura, livros e sambas (e carnaval!) são substantivos na mesma frase, mas em 2024 diversas escolas, tanto no Rio quanto em São Paulo, buscaram inspiração em escritos e publicações para seus desfiles. No grupo especial do Carnaval do Rio de Janeiro, pelo menos quatro agremiações partem diretamente de textos ou publicações em seus enredos – outras, utilizam fontes bibliográficas para discutir seus assuntos. Em São Paulo, a atual campeã, a Mocidade Alegre, tem um enredo inspirado em Mário de Andrade e nas suas viagens pelo Brasil, bem como no seu primeiro livro, Pauliceia desvairada. Ao mesmo tempo, editoras também preparam ações de divulgação nas redes sociais para aproveitar o destaque dos livros no período.

No Rio, Portela e a Grande Rio trazem em seus enredos adaptações de obras literárias contemporâneas. Na Portela, é o livro de Ana Maria Gonçalves Um defeito de cor (Record), e na Grande Rio, a obra Meu destino é ser onça (Record), escrita por Alberto Mussa. Em São Paulo, os desfiles do Grupo Especial ocorrem nos dias 9 e 10 de fevereiro, e as escolas do Grupo Especial do Rio de Janeiro desfilam entre os dias 11 e 12 de fevereiro.

É neste contexto também que ganha destaque no mercado editorial a nova Editora Serra da Barriga, com uma reedição cuidadosa do clássico Na roda do samba, de Francisco Guimarães, o jornalista conhecido como Vagalume. Lançado em 1933 reunindo crônicas de jornal de um período anterior – da gênese do samba no Rio –, o livro é o primeiro registro dessa natureza sobre o gênero no país e estava há muito fora de circulação. A organização desta edição é do historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira, com notas e posfácio.

O PublishNews também separou uma lista com 10 livros sobre o assunto para ler no carnaval.

Grande Rio e o mito de origem Tupinambá

Gabriel Haddad e Leonardo Bora © Eduardo Hollanda
Gabriel Haddad e Leonardo Bora © Eduardo Hollanda
Em entrevista ao PublishNews, o carnavalesco Gabriel Haddad, da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, não esconde a animação e fala que a expectativa é alta para o resultado do Carnaval de 2024 – ano passado, a escola terminou em quinto lugar.

Meu destino é ser onça – o livro de Alberto Mussa que inspira diretamente o enredo de 2024 – reconstitui o que teria sido o texto original de uma narrativa Tupinambá da criação do mundo, com a onça enquanto animal, ser e espírito, pela visão da devoração e da admiração, até chegar nos dias atuais, em que a figura da onça é símbolo de luta pela demarcação de terras indígenas, e também da comunidade LGBTQIA+. A cidade de Duque de Caxias, sede da escola, também é terra indígena. “Vamos de 15 mil anos atrás, de quando remonta o mito da criação, até os dias de hoje, trazendo a simbologia da onça”, comenta Gabriel Haddad.

Gabriel detalha que o enredo envolvendo a adaptação do livro vem sendo trabalhado desde 2017 por ele e Leonardo Bora, sua dupla, mas que o atual contexto é o mais correto para a estreia no Carnaval. "Estávamos aguardando o momento certo para o lançamento, e calhou que em 2024 temos o retorno do manto Tupinambá, roubado nas colonizações, para o Brasil. O manto Tupinambá é muito importante para os rituais antropofágicos. Hoje, uma das artistas envolvidas no retorno do manto vai participar do nosso desfile". Neste ano, um sagrado manto Tupinambá que estava na Dinamarca desde 1699 retornou ao Brasil, e ficará localizado no Museu Nacional (Quinta da Boa Vista – Rio de Janeiro / RJ).

Para Livia Vianna, editora-executiva da Record, o timing da escola é, talvez, um dos maiores acertos dentro da adaptação do enredo. “Me parece um timing muito acertado porque, de uns tempos para cá, há uma crescente preocupação com o resgate da história dos nossos povos originários. A figura da onça anda bastante popular. Tem sido um espanto e uma emoção acompanhar o trabalho das Escolas de Samba que estão adaptando os livros para a Avenida. É muito interessante ver que, da interpretação dos carnavalescos, se desdobra uma nova forma de contar aquela história que é ainda mais espetacularmente visual do que as adaptações com as quais já estamos acostumados”, comenta.

No processo do Carnaval, as escolas divulgam uma sinopse antes do samba em si. O documento da Grande Rio destaca a participação de Mussa ao longo do processo. "Ele [Mussa] pôde nos passar muito sobre a importância da onça em diversas simbologias, e que não estão presentes no livro e vão além". Os carnavalescos conheceram o autor em 2018, após ganharem o Estandarte de Ouro com a Acadêmicos do Cubango naquele ano. Apesar da proximidade, Gabriel conta que eles esperaram até a confirmação final do enredo para contar para Mussa sobre a adaptação de Meu destino é ser onça.

"Não falamos do enredo, a gente tem um pouco de medo de não acontecer, fomos conversar com ele [Mussa] apenas esse ano. E ele ficou muito feliz e disse que é uma homenagem à vida dele", afirma.

Confira o samba enredo da escola Grande Rio:


Portela canta obra de Ana Maria Gonçalves

Já a Portela adaptou o livro Um defeito de cor (Record), de Ana Maria Gonçalves, para o enredo do Carnaval. O livro aborda a história de uma africana idosa, cega e à beira da morte, que viaja da África para o Brasil em busca do filho perdido há décadas. Este é pelo menos o quinto enredo da Portela inspirado diretamente em um livro nas últimas décadas – Mário de Andrade e José Alencar foram outros nomes na mesma situação.

Antônio Gonzaga e André Rodrigues, © Divulgação
Antônio Gonzaga e André Rodrigues, © Divulgação

Um defeito de cor é um livro épico que tinha mesmo tudo para ser enredo de Escola de Samba", comenta Livia Vianna, da Record. "É repleto de história, mitologia e emoção. A primeira pessoa que eu vi cantar essa pedra foi outro autor da casa, Luiz Antonio Simas, anos atrás durante um jantar em que estávamos com a autora Ana Maria Gonçalves em uma Flip, ele disse: 'Um defeito de cor ainda vai ser tema de Escola de Samba, não tenho dúvida'. Por mais que tenha sido uma vontade antiga nossa fomentada por esse comentário de Simas, a concretização veio por escolha dos carnavalescos da Portela, que leram o livro e se encantaram”, comenta a editora-executiva.

Este é o primeiro trabalho dos carnavalescos Antônio Gonzaga e André Rodrigues à frente do carnaval da Portela. Como indica a sinopse do enredo, o sonho da Portela “está baseado no principal fator simbólico que dá consistência para ela ser o que é e chegar aonde chegou: o afeto”. A história do livro, invocando ancestralidades, serve de inspiração para este caminho.

“Somos dois artistas negros fazendo a centenária Portela", disse Gonzaga à Agência Brasil. "A escolha do Um defeito de cor foi exatamente esse encontro de trajetórias. É um enredo que nós dois já tínhamos vontade de desenvolver, mas que só fomos descobrir isso quando nos juntamos na Portela”.

Confira o samba enredo da Portela:


Outras escolas

O carnavalesco Leandro Vieira, da Imperatriz, atual campeã do Carnaval do Rio, inspirou-se em uma ficção – o testamento da cigana Esmeralda, personagem do poeta Leandro Gomes de Barros – para criar uma nova possibilidade para a personagem, além da já descrita pelo poeta e cordelista.

Em entrevista ao Globo, Vieira disse acreditar que enredos ligados à literatura fazem parte de um “movimento cíclico” do carnaval, bem como aspectos históricos "O carnaval se olha e se referencia em si próprio. Olhando para a trajetória dos meus pares, nós todos buscamos nos referenciar na história do carnaval", disse.

O Acadêmicos do Salgueiro contou com a participação de Davi Kopenawa na criação do seu samba, Hutukara. O livro A queda do céu: palavra de um xamã Yanomami (Companhia das Letras), de Kopenawa e Bruce Albert, consta na lista de referências da sinopse do enredo da escola, entre outros.

Em 2023, a agremiação Porto da Pedra retornou à elite do carnaval carioca após um enredo baseado no livro A jangada: 800 Léguas pelo Amazonas, do francês Júlio Verne. Este ano, a campeã da Série Ouro volta a investir em um enredo baseado em livro: é o Lunário Perpétuo, escrito pelo espanhol Jerónimo Cortés, no século XVI – mas referenciado por Câmara Cascudo como uma das obras mais lidas no nordeste brasileiro por dois séculos. O carnavalesco Mauro Quintaes se inspirou no livro, um almanaque de conhecimentos gerais.


Em São Paulo, a Mocidade Alegre vai desfilar com o enredo Brasileia desvairada – inspirada nas viagens de Mário de Andrade pelo Brasil e no seu livro de estreia, a Pauliceia desvairada.

"Em 2024, a Mocidade Alegre vai viajar pelo Brasil com o poeta Mário de Andrade", diz a sinopse da escola. "As viagens que o escritor fez pelo Brasil vão guiar o enredo da Morada, percorrendo o norte, o sudeste e o nordeste até dizer chegar. Em um encontro com o povo e a cultura popular que nos forma. Construir mais uma vez um novo Brasil, rever a identidade brasileira e, ainda assim, festejar quem somos é o desejo e a missão da Mocidade Alegre para 2024. Uma escola que tem o povo e o compromisso de celebrar em seu próprio nome".

O enredo é do carnavalesco Jorge Silveira e do enredista Leonardo Antan.


*Estagiária sob a supervisão de Guilherme Sobota

[24/01/2024 09:00:00]