Editoras, associações e organizações árabes não irão para a Feira do Livro de Frankfurt
PublishNews, Talita Facchini e Guilherme Sobota, 17/10/2023
Decisão ocorre em um contexto de crescente alarme internacional por conta da guerra e pelo cancelamento de uma cerimônia premiação literária que homenagearia uma autora palestina; diretor da Feira fala em 'completo desastre'

Entidades árabes do livro cancelaram participação em Frankfurt | © Anett Weirauch / FB
Entidades árabes do livro cancelaram participação em Frankfurt | © Anett Weirauch / FB
O início da 75ª Feira do Livro de Frankfurt foi diretamente afetado pelo contexto geopolítico envolvendo Israel e Palestina. Nos últimos dias, editores, associações e organizações árabes e asiáticos anunciaram que não participarão mais do evento. A decisão ocorreu em meio ao crescente alarme internacional sobre a questão palestina no Oriente Médio.

As saídas em protesto foram anunciadas por entidades como a Arab Publishers Association, a Emirates Publishers Association, a Sharjah Book Authority e a PublisHer – que teria pela primeira vez um estande no Hall 5. O governo da Malásia também cancelou a participação do seu ministro da educação na Feira, bem como a Associação de Editores da Indonésia. Muitas reuniões entre editores e outros profissionais – a atividade principal do evento – foram canceladas.

Outras instituições, porém, como o International Congress of Arabic Publishing & Creative Industries, mantiveram sua programação. Um painel discutindo as oportunidades do setor no mundo árabe continua confirmado para a quarta-feira (18), no Frankfurt International Stage, Foyer Hall 5.1 / 6.1, com mediação de Carlo Carrenho.

Juergen Boos, Gaia Vince e Karin Schmidt-Friderichs na coletiva de abertura da Feira de Frankfurt 2023 | © Talita Facchini
Juergen Boos, Gaia Vince e Karin Schmidt-Friderichs na coletiva de abertura da Feira de Frankfurt 2023 | © Talita Facchini
Nesta terça-feira (17), na entrevista coletiva de abertura da Feira, o diretor do evento, Juergen Boos, o vice-presidente de Comunicação, Torsten Casimir, e a presidente da Associação Alemã de Editoras e Livrarias, Karin Schmidt-Friderichs, condenaram a violência entre Israel e Palestina e mencionaram as desistências como um "desastre".

"A Feira de Frankfurt é um porto seguro para as discussões e a liberdade de publicação e de expressão está no nosso DNA", disse Juergen Boos. "Estamos muito decepcionados por aqueles que planejavam vir e não virão por conta da geopolítica. É um completo desastre para nós, para mim. Quero que as pessoas estejam aqui, que façam discursos francos, que tenham discussões, mesmo que sejam controversas. Então, realmente estou ansioso para trazer de volta todas essas pessoas que vão vieram por conta da geopolítica".

Karin Schmidt-Friderichs elencou diversas oportunidades em que a Feira de Frankfurt se colocou como espaço de defesa da liberdade de expressão ao longo dos seus 75 anos, como quando dedicou uma edição para Salman Rushdie assim que ele recebeu a fatwa do governo do Irã, em 1989. Ela saiu em defesa de Boos: "O aspecto político é o que diferencia a Feira, sua equipe, e especialmente Boos. Nós condenamos esses ataques de violência, e prestamos condolências a todas as vítimas israelenses e palestinas".

A polêmica

Editoras e associações árabes acusaram a Feira do Livro de Frankfurt de silenciar vozes palestinas, depois que a cerimônia de entrega do prêmio literário LiBeraturpreis 2023 – prêmio anual atribuído a escritoras de África, Ásia, América Latina ou do mundo árabe – em homenagem a um romance de uma autora palestina foi cancelada devido à guerra.

Adania Shibli | © National Book Foundation
Adania Shibli | © National Book Foundation
Quem receberia o prêmio no dia 20, no contexto da Feira, seria Adania Shibli, romancista nascida na Palestina e que divide o seu tempo entre Berlim e Jerusalém.

Em seu anúncio original, a associação LitProm – que distribui o prêmio e que é uma organização separada da Feira de Frankfurt, embora mantida pela mesma, com Juergen Boos na presidência do conselho – disse inicialmente que tomou a decisão de adiar a premiação como uma “decisão conjunta” com a autora. Mas a agência literária de Shibli informou ao The Guardian que a decisão não foi tomada com o seu consentimento e que, se a cerimônia tivesse sido realizada, ela teria aproveitado a oportunidade para refletir sobre o papel da literatura nestes tempos que definiu como cruéis e dolorosos.

Na coletiva desta terça, o vice-presidente de comunicação da Feira disse que houve um mal-entendido entre o evento e a autora. "A LitProm estava em contato com a editora e a autora sobre o que fazer. A situação chegou a um ponto tão extremo que a instituição decidiu adiar a entrega para ter uma oportunidade mais digna de honrar o prêmio. Houve um mal-entendido entre a LitProm e a autora".

Boos disse ainda que buscou proteger autores do discurso de ódio. "Não queria dar um palco para o discurso de ódio", afirmou.

O livro em questão é Detalhe menor, publicada no Brasil em 2021 pela Todavia. O livro, no entanto, revelou-se particularmente controverso na Alemanha, onde um jornalista alemão chegou a deixar o júri do LiBeraturpreis em protesto contra a decisão de homenagear a obra que, segundo uma crítica do jornal Taz, "retrata os israelenses como violadores ou assassinos anônimos, enquanto os palestinos são vítimas de ocupantes envenenados ou com gatilhos rápidos”.

Mesmo assim, a tradução do livro em inglês foi indicada ao National Book Award em 2020 e ao International Booker Prize em 2021.

Por aqui, a Todavia soltou uma nota nas redes sociais repudiando o cancelamento da homenagem que Adania Shibli receberia na feira. "Acreditamos que é papel da maior feira de livros do mundo ouvir e amplificar as vozes de autoras e autores que, como Shibli, encorajam o diálogo e servem de estímulo para melhor compreender sociedades e suas culturas".

O pronunciamento da Todavia faz parte de uma carta aberta assinada por mais de 350 autores, entre eles, nomes como os prêmios Nobel de Literatura Olga Tokarczuk, Abdulrazak Gurnah e Annie Ernaux, e autores como Ian McEwan e Judith Butler. A carta diz ainda que a Feira tem “a responsabilidade de criar espaços para escritores palestinos compartilharem seus pensamentos, sentimentos e reflexões sobre literatura nestes tempos terríveis e cruéis, e não de silenciá-los”.

Ainda na terça-feira, o diretor da Feira de Frankfurt já havia se manifestado, dizendo estar triste pela desistência de alguns expositores da região árabe e, “para dissipar relatos falsos e mal-entendidos que possam ter surgido nos últimos dias”, acrescentou: “milhões de pessoas inocentes em Israel e na Palestina são afetadas por esta guerra, e a nossa solidariedade vai para todos eles”, diz Boos, diretor da Feira, no comunicado enviado ao Publishing Perspectives.

“A Feira de Frankfurt representa o encontro pacífico de pessoas de todo o mundo. Com pessoas de mais de 100 países reunidos em Frankfurt todos os anos, a Feira do Livro sempre foi sobre a humanidade e o seu foco sempre foi o discurso pacífico e democrático”, continua a declaração.

A saída de cena dos árabes

Bodour Al Qasimi, ex-presidente da IPA, presidente da Sharjah Book Authority e fundadora da Emirates Publishers Association e da PublisHer, disse que a decisão da feira é "uma escolha de cancelar a voz de todo um grupo demográfico através do apoio total a Israel, o que efetivamente não deixa espaço para o diálogo e o intercâmbio cultural”.

"Em tempos de crise e conflito, defendo fortemente o papel dos livros, da cultura, dos autores, das feiras de livros, dos intelectuais e dos artistas na promoção da unidade, na redução das tensões e na realização de vozes diversas. Ao fazer isso, podemos melhorar as perspectivas de paz e harmonia. A criação da PublisHer foi impulsionada pelo nosso compromisso em promover a diversidade e a inclusão na nossa indústria. Infelizmente, não nos sentimos capazes de participar na Feira do Livro de Frankfurt este ano, pois isso contradiz estes valores fundamentais", disse.

"As guerras tendem a criar divisões entre as pessoas, mas acreditamos que os livros e a cultura têm o poder de colmatar essas divisões. Essa convicção é a principal razão pela qual retiramos a nossa participação na Feira do Livro de Frankfurt este ano. Tomámos esta decisão devido à escolha da FBF de cancelar a voz de todo um grupo demográfico, apoiando totalmente Israel, o que efectivamente não deixa espaço para o diálogo e o intercâmbio cultural. Em Sharjah, acreditamos firmemente que as feiras do livro devem servir como plataformas para promover o diálogo e unir as pessoas, em vez de as separar, especialmente em tempos de guerras e conflitos", continua ainda em sua declaração oficial. A 42ª Feira Internacional do Livro de Sharjah inicia na próxima semana, no dia 1º de novembro.

Na terça, Boos disse ainda que desde o seu início, a feira de Frankfurt sempre foi sobre a humanidade e o seu foco sempre foi o discurso pacífico e democrático. "A liberdade de expressão é a espinha dorsal da nossa indústria editorial. Isto está no DNA da Feira e no que ela representa. Não podemos comentar as decisões de expositores individuais, mas a nossa plataforma está sempre aberta a autores, editores, tradutores e fãs de literatura de todo o mundo. É claro que a Feira do Livro de Frankfurt é uma plataforma para vozes israelitas e palestinianas".

Por aqui...

O CEO do Clube de Autores, Ricardo Almeida, está em Frankfurt como parte da missão brasileira do Brazilian Publishers, e comentou os acontecimentos. "Nós acreditamos que a única forma de mudar o mundo é compartilhando o máximo possível de histórias, do máximo possível de povos e lugares", afirmou. "Sem censura. Quanto mais pessoas lerem relatos e experiências e visões de mundo umas das outras, mais conexão se cria entre nossa espécie e menos espaço é deixado para radicalismos e violências. Ver o principal evento do mercado editorial – que deveria agir como luz civilizatória – tomar partido radicalmente e cegar-se perante as atrocidades que estão sendo cometidas é surpreendente".

[17/10/2023 02:10:00]