Salman Rushdie, muito além de 'Os versos satânicos'
PublishNews, Thales de Menezes, 22/08/2022
Autor anglo-indiano tem um obra vasta e premiada, dentro da qual o livro condenado pelos extremistas islâmicos desvia a atenção merecida por ele ser um dos maiores escritores em língua inglesa do mundo

Salman Rushdie | © Divulgação
Salman Rushdie | © Divulgação
O mundo continua acompanhando a recuperação do escritor anglo-indiano Salman Rushdie, esfaqueado várias vezes em um atentado contra sua vida no último dia 12, nos EUA. Segundo boletins médicos, Rushdie está falando normalmente, de forma articulada, depois de precisar recorrer durante três dias a aparelhos de respiração artificial. Ainda não foi divulgada a amplitude das sequelas do atentado, que devem incluir a perda de um olho, problemas nos nervos de um dos braços, podendo impedir sua movimentação, e danos ao fígado.

Seu agressor, Hadi Matar, preso logo após o ataque, diz que pouco leu de Os versos satânicos, obra do escritor que foi responsável pela sentença de morte declarada a ele pelas autoridades iranianas desde 1989.

Toda a polêmica que envolve Os versos satânicos desde seu lançamento, fazem com que, para muita gente, essa seja a única obra relevante do autor. É um erro pensar assim. Nos países de língua inglesa, principalmente na Inglaterra, Rushdie é venerado como um dos maiores escritores vivos que escrevem nesse idioma.

No Brasil, a Companhia das Letras lançou quase toda a obra de Rushdie. A seguir, o PublishNews lista o que pode ser lido de sua produção em tradução para o português. Alguns livros ainda estão em catálogo, outros podem ser encontrados em sebo, além de títulos lançados apenas no formato Kindle.

É uma obra praticamente inatacável no aspecto literário, com inventividade e beleza. Aqui estão 12 livros para provar que Salman Rushdie é hoje um dos grandes escritores do mundo.

OS FILHOS DA MEIA-NOITE (1980)
Este é o segundo romance lançado por Rushdie. Sua estreia, Grimus, de 1975, circulou bastante pela internet num PDF de edição publicada em Portugal. Os filhos da meia-noite, que ganhou o Booker Prize de 1981, mostra a trajetória do muçulmano de família rica Salim Sinai, que nasceu em Bombaim à meia-noite de 15 de agosto de 1947, quando a Índia se tornou uma nação independente. Adulto, ele descobre que foi um bebê trocado na maternidade, e deveria ter tido uma vida de pobreza. O autor usa esse recurso para comentar as disparidades sociais no país.

VERGONHA (1983)
Em seu terceiro romance, Rushdie faz um retrato de um período de história violenta no Paquistão, focando a narrativa na disputa pelo poder entre dois homens, Raza Ryder, destacado oficial do exército, e seu primo Iskander Harpp, menos poderoso e influente, mas ainda mais truculento do que o militar. A personagem Sufiya, filha de Hyder, dá o tom de realismo fantástico. Ela tem a capacidade sobrenatural de absorver as emoções reprimidas de todos e, ao fazer isso, sente seu corpo se aquecer, chegando a queimar com as mãos quem ela toque.

OS VERSOS SATÂNICOS (1989)
Para além da polêmica, a obra é uma das melhores escritas por Rushdie. O romance é envolvente, beira a prosa poética ao contar a saga de dois atores indianos que tentam a sorte na Inglaterra sob Margaret Thatcher. Os dois caem do céu para a terra depois que o avião em que viajavam é explodido por terroristas. Eles chegam ao solo metamorfoseados: um deles se tornou um diabo, e o outro agora é um anjo.

HAROUN E O MAR DE HISTÓRIAS (1990)
O segundo título mais vendido na carreira de Rushdie é certamente seu relato mais encantador. O romance, para leitores de todas as idades, começa com o drama de Rashid, um contador de histórias profissional que, de uma hora para outra, perde o dom da palavra. Ele se torna um homem triste e sem poder exercer seu ganha-pão. Então seu filho, Haroun, descobre que existe um grande mar de histórias e decide encontrar esse lugar, numa aventura em busca das palavras. O livro tem muito humor e celebra o prazer de contar e de ouvir histórias.

ORIENTE, OCIDENTE (1994)
Na divisão entre a cultura oriental e a ocidental, Salman Rushdie praticamente passou toda a sua vida com um pé de cada lado dessa linha imaginária. Nos nove contos deste livro, a confrontação desses dois mundos se dá com personagens inusitados e algumas recriações muito originais, como recontar a tragédia de Hamlet ou as viagens de Cristóvão Colombo sob ângulos jamais contemplados. Um dos textos, O cabelo do profeta, é autorreferente, tratando uma história de profanação do Islã de forma melodramática e com alguns toques de filme policial B norte-americano.

O ÚLTIMO SUSPIRO DO MOURO (1995)
Este é considerado o romance que Rushdie teria escrito numa resposta direta ao aiatolá Khomeini, uma defesa explícita do pluralismo e da tolerância. A história cobre muitas décadas, indo de uma época em que a independência da Índia era apenas um projeto distante até a efervescência no país nos anos 1980. O autor cria um personagem que é ao mesmo tempo português, indiano, árabe e judeu. Nessa miscelânea, não há encaixe possível para ele nas classificações rudimentares que levam a ataques étnicos, nacionalistas ou religiosos.

FÚRIA (2001)
Um dos enredos mais delirantes entre as várias histórias inclassificáveis criadas por Rushdie, com evidente crítica ao poderio americano no mundo. Mistura personagens como Solanka, professor aposentado em Cambridge que constrói bonecos de madeira e é obcecado por um assassino em série que mata garotas de classe alta em Nova York, vestido com fantasias de personagens da Disney, ou uma garota apelidada Little Brain, que ganhou fama na TV e agora quer se arriscar como cantora. O professor conhece então duas mulheres: Neela, uma indiana lindíssima, e Mila, grande fã de Little Brain. Apaixonado por Neela, Solanka volta para sua Índia natal, acompanhado das duas garotas, e lá tem uma surpresa atrás da outra.

SHALIMAR, O EQUILIBRISTA (2005)
Mais uma narrativa ambiciosa, contando quase seis década do século XX. Rushdie usa com fio condutor da história a paixão de um embaixador americano e uma dançarina indiana. Entre guerras e revoluções, uma série de assassinatos ,heróis e vilões, destinos alterados por situações à beira do inverossímil, o livro é uma grande novela, intensa, que mostra também a ação politica americana no Oriente durante a Guerra Fria, a queda da União Soviética e a criação de grupos extremistas islâmicos.

A FEITICEIRA DE FLORENÇA (2008)
Depois de perder os pais para a peste, o italiano Antonino Argalia deixa Florença e vai para o Oriente oferecer seus serviços como mercenário. Combate ao lado das forças otomanas contra o xá da Pérsia, em 1514. Após a derrota do soberano, ele conhece Qara Köz, ex-amante do xá que é uma feiticeira com poderes mágicos. Conduzido por um misterioso contador de histórias, o casal acaba retornando para a Florença dos Médici. Lá, Antonino e Qara têm chances de uma vida em paz, e Rushdie tem oportunidade de falar bastante sobre o apogeu da arte e do pensamento filosófico na época renascentista.

LUKA E O FOGO DA VIDA (2010)
Este livro retoma os personagens de Haroun e o mar de histórias. Dessa vez, o protagonista é Luka, irmão mais novo de Haroun. Depois que o pai deles é amaldiçoado por um dono de circo e cai num sono profundo, o desespero toma conta dos garotos. Luka é atraído pela história de uma força chamada Fogo da Vida, que só pode ser encontrada no topo da Montanha do Conhecimento. Em sua jornada em busca da salvação para seu pai, Luka conhece personagens muito estranhos, que permitem a Rushdie fazer referências a várias mitologias diferentes dentro dessa história de aventuras que, apesar de direcionadas a um público jovem, seduzem leitores de qualquer idade.

JOSEPH ANTON – MEMÓRIAS (2012)
Diante do lançamento de uma autobiografia, os fãs de Salman Rushdie estavam ávidos por encontrar nas páginas detalhes de sua vida escondido, mudando de moradia sem parar, vivendo ao lado de seguranças, sem liberdade de ir e vir por conta própria. Os 13 primeiros anos dessa vida clandestina está bem reproduzido em Joseph Anton. O título do livro é uma referência ao pseudônimo que Rushdie adotou a pedido do serviço secreto inglês. Para forjar sua nova identidade, ele utilizou os primeiros nomes de dois autores que são referências assumidas em sua literatura, Joseph Conrad e Anton Chekhov.

QUICHOTTE (2019)
Finalista do Booker Prize 2019 e best-seller do New York Times, essa é a versão de Dom Quixote criada por Rushdie para o mundo moderno. Ele estabelece a narrativa distribuída em dois protagonistas. Um é Sam DuChamp, escritor sem talento que quer ganhar a vida com romances policiais; o outro é personagem de um de seus livros, Quichotte, um vendedor de carros usados meio atrapalhado, que se apaixona por uma estrela de TV. Para a figura de Sancho Pança, teve a inventiva ideia de criar um filho imaginário para Quichotte, que carrega a tarefa de escoltar o pai em seu delírio. Rushdie consegue colocar empecilhos nas vidas do criador e de seu personagem, num livro que tem um tom melancólico adequado ao chamado “cavaleiro da triste figura”.

[22/08/2022 09:00:00]