A última luta de Anne Frank
PublishNews, Leonardo Neto, 18/08/2015
Fundação detentora dos direitos de ‘O diário de Anne Frank’ sustenta que obra não cairá em domínio público no início de 2016 e declara guerra a quem publicar a obra

Momumento em homenagem à Anne Frank, em Amsterdã | © Factumquintus/WikiCommons
Momumento em homenagem à Anne Frank, em Amsterdã | © Factumquintus/WikiCommons
A menina Anne Frank, dona do diário que comoveu o mundo e vendeu milhões de exemplares mundo afora, morreu em data desconhecida em 1945. Pela Convenção de Berna, tratado internacional para proteção de obras literárias e artísticas assinado pelo Brasil, o seu diário cairia em domínio público no dia 1º de janeiro de 2016, quando se completam 70 anos da morte da heroína judia vitimada aos 15 anos no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha. Mas não é assim que pensa a Fundação Anne Frank, detentora dos direitos da obra, que afirma categoricamente que os direitos pertenciam ao pai de Anne, Oto Frank morto em 1980.

O caso é tão complicado e a busca por respostas deve ser tão intensa que a Fundação criou um Q&A em português que tenta esclarecer as razões pelas quais o livro não cairá em domínio público no próximo dia 1º de janeiro. Em nota enviada à redação do PublishNews, a Fundação Anne Frank, criada por Otto em 1963, informa que tomará “medidas legais contra qualquer violação de seus direitos, e reivindicar por eventuais danos”.

“O que deixa esse caso cheio de nuances é a questão da autoria da obra”, observa Fernanda Gomes Garcia, gerente jurídica da Câmara Brasileira do Livro (CBL). O Diário de Anne Frank, que a gente conhece, é vendido nas livrarias e editado no Brasil pela Record, seria, na verdade, uma adaptação do original deixado por Anne. “A primeira versão resumida do diário foi editada e publicada em 1947 por Otto Frank. A segunda versão, completa, foi editada por Mirjam Pressler e publicada em 1991”, argumenta a fundação. “Adaptações são como uma nova obra”, explica Fernanda. Assim, a versão deixada por Otto só cairá em domínio público depois de decorridos 70 anos de sua morte, ocorrida em 1980. Já Mirjam “está viva e bem”, segundo diz o documento hospedado no site da Fundação Anne Frank.

Mas o assunto está longe de ser consenso. Mundo afora, especialistas, editores e apaixonados pelo documento histórico deixado por Anne Frank não concordam com a medida da Fundação. Emilie Kannekens, do Institute for Information Law da Universidade de Amsterdã escreve no Kluwer Copyright Blog a sua opinião. Para ela, a ideia de que Otto tenha sido coautor do Diário de Anne Frank é muito questionável. “Otto não escreveu o diário com Anne, mas editou o diário depois de sua morte”, aponta. “Se Otto não é coautor do diário, mas apenas adicionou algo nele, há o copyright na adaptação, sem prejuízo ao trabalho original. Isso significa que partes do diário original de Anne, como foi publicada em 1947, cairia em domínio público 70 anos depois da morte de Anne e as adaptações de Otto cairiam em domínio público 70 anos depois de sua morte [ele morreu em 1980, ou seja, a sua adaptação estaria em domínio público em 2051]. Isso transformaria o diário uma complicada colcha de retalhos, com partes protegidas e partes não protegidas”, aponta a pesquisadora do Institute for Information Law. Fernanda, da CBL, concorda com Emilie. “O original que está lá preservado não está mais protegido pelas leis do direito autoral, no entanto, a adaptação do pai ou de Mirjiam sim”, reforça. Os originais do Diário de Anne Frank estão depositados no Instituto Holandês para a Documentação de Guerra.

O caso Peter Pan
Um outro dado curioso acerca da obra de Anne Frank é que os royalties apurados com as vendas do livro pelo mundo são revertidos para instituições de caridade no mundo todo. Isso faz lembrar o caso de Peter Pan. Pela lei britânica, por exemplo, os direitos de Peter pan, do escocês J. M Barrie (1860-1937), deveriam cair em domínio público em 1987, ou 50 anos depois da sua morte (só mais tarde, em 1996, com a criação da União Europeia, o Reino Unido passou a adotar a regra de 70 anos de morte para liberação dos direitos autorais). No entanto, o governo britânico deu a um hospital o direito perpétuo de coletar os royalties da obra. Mas a exceção é aplicável somente no país. Da mesma forma, a Holanda ou a Suíça, onde a fundação está sediada, podem criar exceções, mas isso não valeria a outros países.

Outro caso de repercussão mundial é a obra de Antoine de Saint-Exupery, que caiu em domínio público em 2015. Os herdeiros do escritor transformaram o Pequeno Príncipe em uma marca registrada. Assim, não pode ser usada comercialmente. No entanto, os próprios detentores da marca no Brasil reconhecem que a obra – se publicada na íntegra – não está mais protegida pela Lei dos Direitos Autorais do Brasil.

[19/08/2015 09:16:00]