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A obra de arte na era da dispensabilidade de artistas
PublishNews, Julio Silveira, 31/01/2023
Já é possível escrever e ilustrar um livro inteiro em algumas horas com inteligência artificial. O que isso significa para o mercado das ideias?

Você talvez tenha visto, em meio às “informações” que jorram aos borbotões em suas redes, a notícia de um livro infantil escrito e ilustrado por “inteligência artificial”. O fait divers dava conta do fim de semana em que um certo Ammaar Reshi usou um “gerador de textos” para compor um livro infantil e um “gerador de imagens” para ilustrá-lo. No domingo à noite, o livro já estava à venda na Amazon. Reshi seria talvez o primeiro “autor” de um livro que ninguém escreveu e que ninguém ilustrou.

A tecnologia não é nova, mas parece que na virada do ano alcançou o patamar da HAL 9000 de Arthur Clarke: uma entidade algorítmica que se faz passar por humano — e o excede. O “gerador de texto” chama-se ChatGPT e é capaz de escrever instantaneamente desde receitas de bolo a tratados hagiográficos. E, sim!, pode escrever livros, no gênero e estilo que o freguês pedir. Eis um video com um passo-a-passo, do título aos capítulos ao texto; da orelha às avaliações de clientes:

A capa e as ilustrações podem ser feitas do mesmo modo: um “comando” obedecido em menos de um minuto por um “robô”. Em outras palavras, o que importa agora é saber perguntar, não saber a resposta. Pode-se comandar que o sistema, por exemplo, «/imagine um menino conversando com uma máquina-de-escrever-robô, ilustração de livro infantil com lápis pastel». Antes que eu chegasse ao fim desse parágrafo, o Midjourney já tinha “pintado” a imagem abaixo. O deslumbramento com o resultado acaba quando você acrescenta ao comando «ilustrado por Ziraldo». Ou «escrito por Luis Fernando Veríssimo».

Não vou tratar aqui do “deepfake” literário que pulula nos whatsapps dos tios e tias. O que quero é cutucar as implicações éticas das criações sem criadores, a começar por desbaratar a falácia de que arte e texto AI não têm criadores. Eles existem. Mas estão diluídos no turbilhão do “bigdata” de onde ChatGPT e Midjourney extraem sua inspiração. Já estão em curso processos coletivos, em nome da classe dos ilustradores, contra empresas de “arte gerada” como a MidJourney.

O pulo do gato da Inteligência Artificial é quando ela aprende a aprender. A partir daí se auto-alimenta de um cabedal de referências: textos, imagens, contextos, estilos — e a internet hoje é uma fonte mais hiperbólica que qualquer biblioteca que Borges poderia conceber. Ela não só “compreende” o que são objetos simples e conceitos abstratos, mas também como os seres humanos entendem tais signo e sentem a pletora de estilos e gêneros. Assim, um comando como «escreva um romance policial soturno ambientado na Suméria com um detetive zumbi escrito por Virginia Woolf onde o assassino era o leitor» torna-se para a máquina uma equação trivial.

Um argumento, um tanto corporativo, de escritores e ilustradores é que o tal cabedal de referências da qual a IA bebe é, na verdade, composto de uma miríade de obras, cada um com seu autor ou autora. A “arte gerada” seria então um aparato difuso e automático de plágio, espoliando direitos alheios. Papo reto: teme-se a dispensa em massa de redatores, ilustradores e, quem sabe, até de editores. Não está longe, tecnicamente falando, a possibilidade de uma empresa redigir, ilustrar e publicar um livro feito na medida para o gosto do leitor. Individualmente, instantaneamente.

Para além da ética trabalhista, uma inquietação mais profunda, filosófica, foi suscitada por… um “gerador de texto”. Em exercício dialético entre o escritor Joca Terron e o ChatGPT, argumentou-se que:

…em relação ao conceito de originalidade, é importante reconhecer que as ideias e os pensamentos gerados por uma inteligência artificial sempre serão influenciados pelos dados e algoritmos com os quais ela foi treinada e, portanto, podem não ser ‘originais’ no mesmo sentido que um pensamento gerado pelo homem.

[Porém,] em grande parte, a prosa de ficção é restrita à repetição de formas e à construção de personagens e situações baseada em estereótipos. Nesse contexto, é possível falar em originalidade? Não estão também, os humanos, trabalhando com ‘dados e algoritmos’ com os quais fomos treinados?

Qual seria a diferença moral entre a inteligência “artificial” e aquela “natural” dos seres humanos? As criações são feitas por pessoas que sofreram a influência de outras criações. O que para a AI são “dados” e “algoritimos”, para um humano são “estítumulos recebidos” e “(pré)conceitos”. Assim, a “rede neural eletrônica” seria apenas uma exponenciação mais eficiente de um cérebro humano, uma “extensão do corpo”, como disse McLuhan. Poderia a inteligência artificial transcender o lamaçal de algoritmos/preconceitos e abrir campos artísticos efetivamente originais, como lograram alguns humanos, ou ficará eternamente no entrecruzamento de pastiches?

Deixando a filosofice de lado e voltando à vida dos boletos a pagar: a “Arte generativa” da Inteligência Artificial vai facilitar o trabalho de escritores, ilustradores e educadores ou vai os tornar dispensáveis? Por muito tempo os “profissionais criativos” viam-se protegidos do avanço da automação. Pregava-se que os robôs iriam tomar o lugar dos operários; que os computadores iriam dispensar os engenheiros; mas que a criatividade nunca teria um substituto. Agora tem. Essa é uma novidade que pode ser negada ou abraçada, mas houve quem apostasse um bilhão de dólares que ela será a nova realidade.

O fato é que só poderemos discutir suas implicações quando tivermos uma noção de seu potencial. Ainda estamos tateando: com ela já criei capas e sinopses para livros que não existem, e que podem ser consultados aqui.

Também “escrevi” a conclusão desse artigo, redigida em cinco segundos pelo ChatGPT:

A Inteligência Artificial tem o potencial de revolucionar a indústria editorial. Por um lado, a IA pode ajudar a automatizar o processo de publicação, tornando-o mais rápido e eficiente. Por outro lado, a IA também pode ajudar a identificar e corrigir erros em manuscritos antes que cheguem ao público. Em ambos os casos, isso economizaria tempo e dinheiro para as editoras e melhoraria a qualidade dos livros que chegam aos consumidores. No entanto, também existem alguns riscos inerentes associados à tecnologia de IA. Se os algoritmos usados pela IA forem falhos, isso pode levar […] a decisões editoriais eticamente questionáveis. Embora seja importante considerar esses riscos, eles são relativamente pequenos quando comparados aos benefícios potenciais. No geral, a Inteligência Artificial tem o potencial de revolucionar a indústria editorial, mas é importante estar ciente dos riscos e se preparar para eles antes que eles aconteçam.

“I'm sorry HAL, I'm afraid I can't do that.”

Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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