A resposta portuguesa foi rápida, mas também vêm rápidos os efeitos sobre a economia: ruas desertas e comércio fechado, à exceção dos supermercados e farmácias, onde só podem entrar cinco compradores por vez. As livrarias — tanto as de shopping quanto as de rua — estão (quase) proibidas de abrir, embora a ministra da cultura (sim, aqui ainda há) tenha ressaltado que elas podem funcionar se recorrerem a um postigo (um balcão/janela para a rua, como a das farmácias brasileiras em áreas de risco).
Ver como os editores e livreiros portugueses reagem a este pouso forçado e quais soluções vislumbram pode servir de referência, ou consolo, para seus colegas da margem esquerda do Atlântico. Mas antes de encontrar semelhanças, é preciso estabelecer as diferenças:
O mercado português de livros difere do brasileiro em tamanho e situação: é bem menor (na melhor das estimativas, equivale a um sexto) e vai bem melhor: vem há alguns anos com um crescimento, nada exuberante, mas consistente (embora ainda não tenha voltado aos números anteriores à última crise, em 2011). A cadeia do livro opera em bases mais salutares, numa ecologia que viabiliza livrarias de rua, ao lado de grandes redes e da venda em hipermercados (40% do mercado).
Isso posto, ressalte-se que em Portugal há um governo ativo e coeso (e respeitado) que reconhece o papel estruturante da cultura para a economia e sociedade, e também uma população confiante e acostumada a recorrer aos governantes. Isso talvez explique que em Portugal os profissionais do livro primeiro foram cobrar as autoridades institucionais, enquanto que livreiros e editores do Brasil abriram guerra entre si.
Há medidas governamentais de proteção da economia, algumas gerais — como a moratória do pagamento de aluguéis, incluindo os particulares —, outras específicos para a cultura, como uma linha de apoio emergencial a criadores e promotores. Mas não se sabe o quanto isso pode mitigar o cataclisma: nas primeiras duas semanas de confinamento, o total de livros vendidos foi de apenas um terço do mesmo período do ano passado e, com a perspectiva de mais um mês em estado de emergência, a tendência é achatar a curva do faturamento até o zero.
“É uma situação dificílima que se está a viver neste momento, porque todo o circuito parou”, diz o presidente da APEL (a equivalente lusa da CBL), “as vendas estão completamente paradas, não há venda nenhuma, as que ainda subsistem são on-line, mas mesmo as livrarias virtuais têm um peso muito pequenino no conjunto do mercado, se representarem 5% das vendas é muito bom”.
Além da baixa participação do digital no mercado (em comparação aos 40% no Brasil), por conta da boa rede de livrarias e a maturidade do hábito de leitura, o vírus pegou o livro português no contrapé: a última semana antes do confinamento tinha registrado aumento de 12% frente ao mesmo período do ano anterior; e 2019 registrou um crescimento leve (uns 3%) porém seguro da economia do livro.
O maior temor é que as algumas livrarias que fecharam por ordem do estado de emergência… não abram pela desordem financeira.
A primeira reação organizada partiu de um grupo de (maior) risco: as livrarias independentes. Reuniram-se 57 delas (número vale a pena comparar com a base brasileira de livrarias mapeadas por Beatriz Alves) para subscrever uma carta dirigida aos governantes e à sociedade em geral. O manifesto da ReLI (Rede de Livrarias Independentes) reivindica apoio e sugere medidas tanto emergenciais (para manter o segmento vivo) quanto estruturais para fortalecer o que sobrar do mercado, “se conseguirmos acordar desta longa noite”.
Do governo, a ReLI pede recursos para cobrir aluguéis e manter funcionários — o que já está no plano geral anti-crise do Estado —, mas pleiteia que não sejam apenas uma moratória, porque “o problema é o adiamento do problema”, como diz José Pinho, livreiro da gigantesca (embora independente) Ler Devagar e promotor do Festival Literário de Óbidos. “Como nas rendas [aluguéis], no layoff [demissões], nos empréstimos que não forem a fundo perdido, ou noutra área qualquer, todas estas medidas que até parecem simpáticas e solidárias não passam de medidas proporcionadoras de acumulação de dívida contraídas por empresas que provavelmente, não vendendo, nem daqui a dois ou três anos estarão em condições de amortizar.” Também demanda que livrarias independentes tenham prioridade nas compras governamentais e que os livros didáticos, um dos esteios do mercado, sejam prioritariamente vendidos pelas lojas independentes.
A Lei do Preço Fixo voltou a ser invocada para defender as livrarias. Ela vigora em Portugal, mas sua aplicação é pouco rigorosa, e assim como o touro nas touradas à portuguesa, os infratores não sofrem graves consequências. O editor Hugo Xavier, da e-Primatur, que busca novas soluções para o velho negócio do livro, opina que “se alguma coisa deveria acontecer era uma luta e um pedido de regulamentação legal do desconto comercial” e prefere o estabelecimento de novas regras em comum. Para Hugo, “a ReLI precisa criar mecanismos e princípios comuns e os cumprir, para ira além de uma amálgama de intenções. […] O resto ficaria a cargo da imaginação e capacidade e risco de cada agente do livro, e os pequenos livreiros aí tem uma vantagem na agilidade e criatividade que as grandes cadeias não terão.”
Do lado proativo, as livrarias da ReLI propõem fortalecer a rede e conquistar espaço, ou não perdê-lo para as redes e as lojas virtuais. As medidas incluem a constituição de um e-commerce próprio e coletivo, que constituiria “o embrião de uma central de compras e de distribuição”. Talvez aí resida a melhor inspiração para as livrarias brasileiras: trocar o corporativismo pelo cooperativismo. Porém, para além das dificuldades inerentes da criação de uma federação de livrarias, acomodando todos os diversos interesses, há coisas que Portugal poderia fazer e o Brasil não, como o compartilhamento de um e-commerce onde o endereço do comprador determinaria qual livraria fará a venda — impensável no cenário do Brasil, com um imenso território onde as poucas livrarias independente dividem os mesmos poucos bairros nas mesmas poucas cidades.
Porém, enfim, é Semana Santa e a ressurreição da economia pode vir, não por milagre, mas pela inflexão da curva de contágio, o que já faz sonhar com uma volta à rua e aos livros. Que não se subestime a resiliência portuguesa: há 265 anos, após terremoto, tsunami e incêndios, Lisboa tratou logo de “enterrar os mortos e cuidar dos vivos” e a cidade foi logo reconstruída, em bases mais seguras e majestosas. Do mesmo modo, imagino que lá para agosto ou setembro, vencida a calamidade, a Feira de Lisboa estará cheia de livros e de leitores (mesmo que com máscaras).
Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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