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Nos 115 anos do nascimento de Drummond, inéditos mostram como ele lidava com a morte

Em manuscritos, poeta tratava de doenças, percalços, perdas de parentes e amigos
O poeta Carlos Drummond de Andrade Foto: Acervo Carlos Drummond de Andrade
O poeta Carlos Drummond de Andrade Foto: Acervo Carlos Drummond de Andrade

RIO — No início do ano, vasculhando pela enésima vez o baú sem fundo do avô, o artista plástico Pedro Augusto Graña Drummond reencontrou manuscritos que o poeta havia arrancado de seus diários . Eram páginas em que tratava de doenças, percalços, mortes de parentes e amigos, como Manuel Bandeira. Talvez não pretendesse publicá-las. Mas a verdade é que tampouco as descartou, como fez com tantas e tantas páginas. E, como o que ele escrevia não é de se jogar fora, a papelada vai virar livro.

“José chama-me pelo interurbano, para dizer que a situação de mamãe, tal como está, é insustentável. Ela não o suporta mais”

Carlos Drummond de Andrade
Trecho de 'Uma forma de saudade'

Os novos inéditos de Carlos Drummond de Andrade chegam ao mercado em meados de novembro. E são um curioso contraponto à comemoração dos 115 anos de nascimento do poeta, na próxima terça-feira, que será marcada por uma série de eventos em Minas e no Rio. A nova obra, afinal, batizada de “Uma forma de saudade”, é uma espécie de poesia sobre o fim da vida — mas sem sentimentalidades, lamúrias ou morbidez. Encontra-se até mesmo, aqui e ali, um toque de humor (bem discreto, como a situação costuma exigir), além de observações breves e certeiras. Coisas de Drummond.

— Carlos morreu há 30 anos, completados no último mês de agosto. Quando vi esse material, me pareceu que poderia ser interessante publicar a visão dele sobre um assunto que toca todo mundo em algum momento da vida. Todos temos que enfrentar as perdas dos parentes, das pessoas amadas, e o livro mostra como ele recebeu a notícia da morte dessas pessoas — conta Pedro Augusto.

Nascido em 31 de outubro de 1902, Drummond compensava a distância física dos parentes com telefonemas e, principalmente, cartas. Em seus diários, mantinha seções especiais para registrar nascimentos e mortes na família, além de eventuais observações sobre suas doenças, internações e reveses do gênero. De alguma maneira, as anotações serviam para que exercitasse “uma forma de saudade”, como chegou a comentar numa entrevista à própria filha, Maria Julieta, em 1984.

Folhear os diários de Drummond é sempre uma experiência rica. Seu talento para descrever personagens em poucas palavras é exemplar: “José é muito dedicado, mas brusco, terrivelmente franco”, diz ele, a respeito do irmão. Impossível não lembrar de conhecidos assim, aqueles de quem preferimos manter distância. Também são notáveis os comentários sobre as confusões em família: “Conclusão: não intervir. Nunca se sabe o que é conveniente fazer”. Certíssimo.

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“Mamãe faria hoje oitenta anos. E eu estaria em Belo Horizonte, a seu lado, diante de uma mesa cheia de doces”

Carlos Drummond de Andrade
Trecho de 'Uma forma de saudade'

Do pai, “o velho Paula Andrade”, o poeta pouco fala. Em 1968, por exemplo, a anotação é sintomática: “37º aniversário da morte de meu Pai. Já vivi mais tempo sem ele do que com ele vivo. E nada fiz hoje, nada, em sua memória”.

Outros trechos também surpreendem pela crueza — ou apenas pela percepção do fim da vida como ela é. É assim que Drummond relata, por exemplo, a exumação dos ossos de sua mãe, em 1954: “...o que estava ali, roído de vermes e sujo de terra, pouco tinha a ver com minha Mãe, separado já de seu espírito, que desaparecera. Cumpríamos um dever filial e piedoso, mas não havia motivo para sofrimento; tudo estava acabado e perfeito”. Não é assim que funciona?

Já em 1969, Drummond registra: “D. Julieta completa cem anos. Minha grande amiga, minha mãe”.

Ou seja, nada de pretérito. A vida continua.

“Parentes mineiros. Vêm pela manhã, e quer a gente apareça quer se esquive, furtam-nos o melhor do tempo”

Carlos Drummond de Andrade
Trecho de 'Uma forma de saudade'

Além de um belo material iconográfico, pertencente ao acervo de Carlos Drummond de Andrade, as 190 páginas de “Uma forma de saudade” registram as impressões do poeta mineiro sobre a perda dos pais e dos irmãos. Em 1968, com a morte da irmã Mariinha, o poeta atesta: “Fiquei sendo o último vivo, dentre os seis irmãos que chegaram à idade madura. É a minha vez de preparar-me”.

A vez dele ainda demoraria a chegar — ele só morreria em 1987, duas semanas após a morte da filha, Maria Julieta, aos 59 anos de idade. Nesse meio tempo, Drummond sofreu a perda de amigos de longa data. “Uma forma de saudade” é também uma homenagem a dois deles: Manuel Bandeira (1886-1968) e Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969). Sobre a saúde de Bandeira, sempre periclitante, o poeta de Itabira escrevia desde 1951.

O livro traz também 44 poemas (nem todos inéditos) com que ele traduziu suas perdas — metade deles tem a ver com Bandeira.

Vale aqui, a propósito, um comentário sobre a poesia das circunstâncias, tão característica de Drummond. No poema “Procura da poesia”, do livro “A rosa do povo” (1945), ele aconselha: “Não faças versos sobre acontecimentos”. Por outro lado, em “Passeios na ilha” (1952), a propósito de um livro de Manuel Bandeira (“Mafuá do malungo”) e sobre a expressão “versos de circunstância”, analisa: “Mas o que é circunstância neste particular de versos? Se se incorpora à poesia, deixa de ser circunstância”.

Para Drummond, mesmo nascendo de uma circunstância, a poesia, por condição, natureza e arte, transfigura essa circunstância.

“66 anos, seu Carlos. Você já viveu uma vida de homem, e acha que foi pouco. Como tudo passou sem que se desse conta da grande extensão percorrida?”

Carlos Drummond de Andrade
Trecho de 'Uma forma de saudade'

Na morte de grandes amigos, registrou em poesia a ausência inexorável e definitiva de Mário de Andrade (“Mário de Andrade desce aos infernos”, de 1945), Guimarães Rosa (“Um chamado João”, 1967), Manuel Bandeira (“Desligamento do poeta”, 1968), Clarice Lispector (“Visão de Clarice”, 1977) e Alceu Amoroso Lima (“Alceu, radiante espelho”, 1983).

As circunstâncias alimentam alguns dos seus melhores poemas. O vocabulário predominantemente concreto, com o tempo, vai se tornando volátil, mas as circunstâncias jamais são apagadas, suprimidas, em benefício de uma linguagem poética que aspire ser exclusivamente uma projeção abstrata e atemporal. Busca-se (missão de poetas como Drummond e Bandeira) o que tem ou teve lugar no mundo da realidade, demasiado humana e finita.

É por conta das inúmeras reflexões suscitadas pela obra de Drummond, que teve 41 livros publicados durante a vida (entre poesia, prosa ou memória), que sua data de nascimento será comemorada ao longo do próximo mês. Até a próxima quarta-feira, por exemplo, Belo Horizonte vai sediar diversos eventos para manter em alta a obra do mais famoso dos poetas mineiros (mais no blog drummond115. wordpress.com ).