‪#‎erotismofemininoeliteratura‬

Da esquerda para direita: Simone Campos, Luciana Hidalgo e Lúcia Bettencourt Foto: Divulgação / Agência O GLOBO

Escritoras reclamam do estigma sobre a literatura erótica feminina

Seis autoras contam como lidam com a sexualidade em seus textos

por Bolívar Torres

RIO — Existe um silêncio generalizado na recepção do discurso sexual da mulher. A conclusão surgiu de uma fala de Márcia Denser, em uma palestra mês passado na UFRJ, sobre a recepção e crítica literária das obras de autoria feminina. Segundo a autora, que deu uma nova dimensão à literatura erótica nos anos 1980, “certos temas estariam interditos às mulheres”. Motivada pela declaração, a romancista Luciana Hidalgo, que também estava na mesa, lançou nesta semana a campanha #erotismofemininoeliteratura, para difundir nas redes sociais trechos eróticos de livros escritos por mulheres. Desde a última terça, leitores do sexo masculino e feminino têm postado passagens de autoras clássicas, como Gilka Machado e Adélia Prado. E diversas escritoras também aderiram à campanha, compartilhando seus próprios textos.

"Apenas um homem não entendeu a proposta e correu para colocar um trecho de um livro dele sobre uma personagem feminina. A ideia é exatamente oposta", conta Luciana.

Mas, afinal, o que uma autora que decide escrever sobre sexo precisa enfrentar? O GLOBO convidou seis escritoras para dar um depoimento sobre como lidam com a sexualidade em sua literatura — e como veem a recepção desses escritos pelo público e pela crítica.

"Você está tentando ser a inspirada, não a musa"
por Simone Campos


"A artista mulher é vista como um objeto de desejo quando ela está tentando ser sujeito - Simone Campos / Divulgação

Meu próximo livro é um romance gráfico de “autoficção científica”. A ilustradora é mulher também, a Amanda Paschoal, e tem bastante erotismo/gente pelada. Afora o primeiro livro, eu falo bastante sobre isso, nas mais variadas chaves, mas é muito raro alguém falar sobre minhas cenas de sexo. Mulheres sabem escrever sobre sexo de forma não estritamente erótica: é crítica social, documento histórico, humor, ironia, mas sua qualidade não é reverenciada. Na parte autobiográfica desse meu futuro quadrinho, comento isso de certa forma. Como a artista mulher é vista como objeto de desejo enquanto ela está tentando ser sujeito. Você está tentando ser a inspirada, não a musa.

E, quando você começa jovem, e ainda escreve sobre sexo sem papas na língua, muitos homens te confundem com o arquétipo de ninfeta-libertina-futura-namorada-de-escritor (ou seja, DELE, o “melhor escritor”). Se você não corresponde, se destoa dessa fantasia dele, ele ou fala mal de você, ou nunca mais fala sobre você. É por isso que fiquei um tanto apagada aqui no Rio: você vira um objeto que se rebelou sendo que nem era isso que você estava tentando fazer. Só projetaram isso em você.

Enfim, o machismo está ficando mais sutil mas ainda rola essa coisa de temer a mulher que escreve sobre sexo sem pudor (e não, não quer dizer que ela queira trepar com você — ou mesmo consentir que vendam sua imagem pessoal como uma hiperlibertina ou “ninfomaníaca” para ser autorizada a escrever sobre sexo).

Autora do romance "A vez de morrer" (Companhia das Letras)

"O tema é um tabu na literatura até hoje"
por Luciana Hidalgo

"Só me atrevi a escrever uma cena mais erotizada em meu último romance" - Luciana Hidalgo / Divulgação

Ao longo da história da literatura, escritores (homens) sempre apareceram mais, foram mais publicados e divulgados. Então, se formos reler grandes clássicos, veremos as mulheres retratadas, descritas, “escritas”, do ponto de vista masculino. Inclusive o erotismo feminino, o corpo feminino: sempre mais presentes na literatura pela ótica masculina.

Nas últimas décadas, com mais escritoras na ativa, excelentes, era de se esperar que isso mudasse, já que as mulheres escrevem, elas próprias, sobre seu próprio corpo, erotizando suas personagens femininas, e também seus personagens masculinos. O que importa nisso tudo então é o ponto de vista feminino. Isso tudo, não por acaso, coincide com o neofeminismo que explode hoje no Brasil. Essa temática tem vindo à tona de uma forma explosiva ultimamente no país, sobretudo por parte das jovens, e tenho acompanhado com muito interesse.

Tudo isso também tem origem, no meu caso, particularmente, numa entrevista que li uma vez do Lobo Antunes. Ele dizia — algo assim — que achava difícil (para escritores em geral, homens e mulheres) escreverem uma boa cena de sexo. Isso sempre me acompanha, pois não deixei de concordar (um pouco) na época. Veja como o tema é um tabu na literatura até hoje. Gosto mais da sugestão erótica do que do sexo mais explícito. E só me atrevi a escrever uma cena mais erotizada em “Rio-Paris-Rio”, meu último romance.

Autora de "Rio-Paris-Rio" (Rocco)

"Quando o homem escreve sobre sexo, é o garanhão"
por Lucia Bettencourt

"Às vezes assumo o ponto de vista masculino para exercitar o direito de me imaginar como Outro" - Lucia Bettencourt / Divulgação

Já fui muito tímida, cheguei a recusar um trabalho com livros eróticos numa editora, por ter medo do que iam pensar. Mãe de três filhos, na época fiquei com medo de que descobrissem na escola! Hoje sei que isso foi um erro, pois gosto de escrever cenas de sexo.

Lendo colegas postando trechos com a hashtag #erotismofemininoeliteratura, e pensando sobre isso, percebo que meu prazer vem de tomar as rédeas da situação, revidar as 500 mil vezes que li, sem protestar, aquilo que era escrito sobre nós, mulheres, na cama.

Às vezes assumo o ponto de vista masculino para exercitar o direito de me imaginar como Outro. Se já se colocaram tanto no meu lugar, creio que adquiri essa prerrogativa. Quando um homem escreve sobre sexo, é saudado como um garanhão, o macho que entende das coisas. A mulher é vista com desconfiança. Em geral, pensam que mulheres só conseguem escrever a partir da própria experiência, e não pela empatia, como qualquer outro escritor. Torna-se necessário ficar lembrando a essas pessoas que somos autoras e que personagens são fictícios.

Ao publicar “Linha de sombra", livro iniciado com um conto agressivamente erótico, fui abordada na sessão de autógrafos. Um homem segurou minha mão e falou, malicioso, com pinta: “Ah, já li os dois primeiros contos, está muito bom…” Respondi: “É mesmo? Também escrevi sobre uma macaca, mas não sou uma macaca!

Autora de "O regresso, a última viagem de Rimbaud" (Rocco)

"Regredimos absurdamente"
por Marcia Denser

"Neoconservadorismo castiga indiscriminadamente homens e mulheres" - Ricardo Bakker / Divulgação

Minha literatura erótica é produto duma elaboração da linguagem como fenômeno estético, duma consciência plena da língua e da linguagem como instrumento de trabalho, por isso minha personagem não é falada pela língua, não vincula o discurso do outro, ao contrário, desloca o discurso da Tradição para colocar o seu próprio, conquistando o direito à própria voz, à própria fala. E quem detém a palavra, detém o poder.

Mas o neoconservadorismo atual e onipresente funciona como uma espécie de censor invisível e como houve, como consequência, um prodigioso retrocesso dos costumes, a mulher volta a ser discriminada.O que mudou em relação aos anos 1980, quando comecei a publicar? Piorou muito. Regredimos absurdamente. O futuro foi ontem, meu querido. Porque no passado havia crítica e críticos de literatura tais como Paulo Francis, Wilson Martins, Leo Gilson Ribeiro: por todos eles, tive minhas obras examinadas com maestria.

Hoje, como é o mercado quem dita as regras, a crítica desapareceu e, com isto, a qualidade literária baixou a níveis absurdos: é bom o que vende! É mesmo? Com este neoconservadorismo atroz que se instalou voltamos tranquilamente ao século 19! E ele castiga indiscriminadamente homens e mulheres. E a própria Literatura e as artes em geral. Repito: o futuro foi ontem!

Autora de "Caim" (Record)

"Apaga-se o discurso erótico da mulher"
por Jamyle Hassan Rkain

"Nesses mais de 100 anos, as coisas não mudaram muito em relação ao discurso erótico da mulher" - Jamyle Hassan Rkain / Divulgação

A sexualidade feminina não é aceita como a sexualidade masculina. O homem pode falar abertamente sobre sua vida sexual, mas a mulher não tem essa liberdade. Este ano, editei um livro que resgatou a obra de Gilka Machado, pioneira da poesia erótica feminina nos anos 1910. Mesmo sendo uma das autoras simbolistas mais importantes do país, andava esquecida. Percebi que nesses mais de 100 anos, as coisas não mudaram muito em relação ao discurso erótico da mulher.

Gilka não foi a primeira mulher a escrever sobre sexo; seu pioneirismo é porque ela foi a primeira a fazê-lo de forma escancarada, a falar de desejo sem máscaras. A crítica literária caiu em cima, usou uma visão determinista para tentar explicar seu trabalho — porque, afinal, uma mulher escrevendo sobre sexo não pode ser natural, sempre é preciso um rótulo. Depois que o marido de Gilka morreu, ela continuou escrevendo sobre sexo — e por isso foi vista como depravada. Como assim, o marido morto e ela falando disso? Após a morte da própria autora, houve um apagamento da sua história pela crítica literária, da mesma forma que apagam o discurso erótico da mulher na literatura contemporânea.

Organizadora do livro "Gilka Machado: Poesia completa" (Hedra)

"Decidi não omitir cenas de sexo"
por Carolina Munhóz

"O caso mais extremo foi uma série de e-mails longos e completamente pornográficos que recebi de um sujeito" - Carolina Munhóz / Divulgação

Cresci com livros de fantasia, mas durante a adolescência sentia que os personagens não se desenvolviam como eu. Harry Potter se tornava um homem e tinha dado apenas alguns beijos, então quando escrevi para esse público decidi não omitir cenas de sexo, principalmente em “O inverno das fadas" e “Por um toque de ouro”, para mostrar que é normal jovens terem relações sexuais e não precisamos esconder isso. Claro que foi um choque, ainda mais por eu ser uma mulher, mas tive apoio e notei ser uma necessidade do público. O caso mais extremo foi uma série de e-mails longos e completamente pornográficos que recebi de um sujeito. Ele havia me visto em uma palestra e depois acreditou que minha entrevista na Fátima Bernardes tinha sido para me comunicar com ele. Quando minha equipe retornou pedindo para os e-mails pararem, recebemos a surpresa: o indivíduo era da Receita Federal, usava e-mail de trabalho e nos ameaçou com linguajar jurídico. Na visão dele, porque eu escrevia sobre sexo estava dando permissão para os leitores me escreverem daquela forma e que meu silêncio após os e-mails era de consentimento.

Autora de "Por um toque de ouro" (Rocco)