Cultura Livros

Em seu último livro, Zygmunt Bauman reflete sobre o processo migratório

Autor restringe o acolhimento de refugiados a uma questão moral

Imigrantes atravessam campo em região na Hungria, em 11 de setembro de 2015
Foto: LASZLO BALOGH / Laszlo Balogh/REUTERS
Imigrantes atravessam campo em região na Hungria, em 11 de setembro de 2015 Foto: LASZLO BALOGH / Laszlo Balogh/REUTERS

RIO — Associações em torno da casa e da proteção de uma ordem doméstica são comuns nos discursos políticos e textos de imprensa sobre as migrações internacionais. O presidente Donald Trump “fechou nossa porta” aos imigrantes, afirmaram dezenas de notícias sobre o decreto que barra cidadãos de sete países do Oriente Médio — de maioria muçulmana — nos Estados Unidos, além de refugiados do mundo todo, com tempo ilimitado aos sírios. Zygmunt Bauman usa a mesma ideia no título de seu último livro, “Estranhos à nossa porta”, recém-lançado no Brasil. A capa da edição brasileira, um bote lotado de pessoas desesperadas, com coletes salva-vidas, reforça a mensagem de uma chegada sem aviso.

A separação entre “nós” e “eles” que Bauman intenciona criticar — mas é reiterada por título e foto — tem sido intensificada com a securitização da imigração, ou seja, sua identificação com uma ameaça existencial. Segundo o autor, ela vem transformando o que deveria ser uma questão moral num tema de segurança, situando os imigrantes “fora do espaço da compaixão”. Todo o livro se norteia pelo princípio de que as migrações estão circunscritas à responsabilidade moral, que foi perdida e deve ser recuperada. Em sua análise, o imigrante é completamente despolitizado, e se torna, como no título, aquele que bate à porta sem ser convidado. Abri-la passa a significar um presente dos “donos da casa”.

A partir do aumento do número de refugiados na Europa, sobretudo em 2015, Bauman identifica um “pânico moral” que motiva políticas restritivas de direitos dos imigrantes e discursos em que o nacionalismo é oferecido como salvação: uma cerca é erguida pela Hungria na fronteira com a Sérvia; a “França para os franceses” é o slogan de Marine Le Pen, candidata da extrema-direita às eleições presidenciais; e Donald Trump, que ainda disputava primárias do Partido Republicano quando o livro foi publicado, em 2016, prometia barrar imigrantes sem documentos e — Bauman se esqueceu — especificamente muçulmanos.

Hoje as promessas de Trump estão no decreto “Protegendo a nação da entrada terrorista estrangeira nos Estados Unidos", suspenso pela Justiça americana. Para Bauman, essa associação do imigrante com o crime não apenas tira a responsabilidade moral de acolher o estrangeiro, mas acaba por conceder permissão moral para a exclusão. Seu diagnóstico muitas vezes recai numa linguagem que reforça a securitização da imigração, que se dá cotidianamente por meio de termos como imigrante ilegal . O autor usa aspas para indicar desconforto com certas expressões — “migrantes econômicos”, “crise migratória”, “nossos quintais” —, mas não busca uma abordagem alternativa ou analisa por que esses termos são questionáveis.

Bauman aponta o perigo de se pensar no imigrante apenas em momentos classificados como de crise, que justificam a securitização . A partir de pensadores como Kant, Hannah Arendt e Kwaeme Anthony Appiah, ele propõe uma (vaga) noção de diálogo, de "fusão de horizontes" que leve à compreensão entre diferentes. A manutenção da imigração como tema moral, no entanto, não desafia a ideia de que só há sujeito político dentro do Estado-nação, base do nacionalismo criticado pelo autor. Esse desafio, por sua vez, envolveria uma disputa sobre o fazer político, nem sempre um diálogo conciliador. É necessário sair do campo moral para se refletir por que certas mortes — como a do menino sírio Alan Kurdi, numa praia da Turquia, em 2015 — causam mais comoção que outras, ou por que o muro proposto por Donald Trump provoca perplexidade, mas não os mais de mil quilômetros de cercas já existentes entre México e Estados Unidos.

Citada por Bauman, a mensagem do Papa Francisco em visita a Lampedusa em 2013, após mais uma tragédia no Mediterrâneo, é bonita, mas insuficiente para se pensar as migrações contemporâneas. Não se trata de negar a necessidade de solidariedade na recepção do imigrante, mas apontar o perigo que a abordagem exclusiva da compaixão tem em despolitizá-lo, retirando sua agência num mundo transnacional. Abrir a porta a um estranho pode fazer sentido não como ato moralmente superior, mas quando as próprias concepções de casa e pertencimento são postas em xeque e renegociadas — ou seja, quando a política entra em jogo.

* Suzana Velasco é autora do livro “Imigração na União Europeia: uma leitura crítica a partir do nexo entre securitização, cidadania e identidade transnacional” (EDUEPB)