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Crítica: Autor gaúcho usa concerto de Dvorák como chave de romance

‘O inverno e depois’ é o trabalho mais recente de Luiz Antonio de Assis Brasil
Autor gaúcho usa concerto de Dvorák como chave de romance Foto: Reprodução
Autor gaúcho usa concerto de Dvorák como chave de romance Foto: Reprodução

“O inverno e depois” (L&PM, 352 págs, R$ 39,90, cotação Ótimo), de Luiz Antonio de Assis Brasil, tem como matéria moldável o tempo. Aquele que se prolonga e se encurta, de modo a pressionar o presente ao encontro do passado e configurar um atalho pelo qual se possa cumprir uma promessa, fazer uma reparação, reencontrar um sentimento. No último romance do escritor gaúcho, o futuro é uma passagem cujo alcance depende da execução de um código particular. Neste caso, o concerto para violoncelo do compositor tcheco Antonin Dvorák (1841-1904).

A Julius, o protagonista, cabe a manipulação do instrumento e do tempo. No ponto de partida da trama, ele está no aeroporto de Porto Alegre, prestes a regressar à estância situada na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, onde viveu a infância e não pisa há 40 anos. A proposta da viagem é encontrar um retiro para se concentrar nos estudos do concerto de Dvorák, cujo primeiro movimento pretende tocar com a Orquestra Municipal de São Paulo. Apesar de questionado sobre a lonjura e o inverno rigoroso, o músico defende a decisão como o cumprimento de um pacto, um trato que segue em aberto desde sua juventude.

Esses anos remontam à década de 1980, quando Julius frequentava a Escola de Música de Würzburg, na Alemanha. Ali, sob o estímulo de um generoso professor, o aluno brasileiro aceita se preparar para o Dvorák, considerado um repto para o violoncelo. Um fato inesperado e a chegada de um tutor severo, porém, convertem a apresentação num fiasco e no motivo para retornar ao Brasil. A desistência é confrontada apenas pelo relacionamento com Constanza Zabala, uma clarinetista uruguaia com quem Julius, pouco a pouco, edifica uma história de amor. De fato, o concerto é também um acerto de contas consigo, um modo secreto de reviver Constanza, mesmo que casado com Sílvia.

Outra presença feminina que o assombra é a de Antônia, a meia-irmã nascida de um adultério. No passado, a menina foi a causa da mudança da família de Julius para São Paulo, e do desarranjo que se estendeu até a morte precoce de seus pais.

Julius sempre a tratou com renúncia; “meios-irmãos são sempre litigantes de alguma forma”, diz. Ocorre que, com a partilha dos bens, Antônia ficou responsável pela gerência de metade da estância e reencontrá-la é uma possibilidade, mesmo que garanta “não ter qualquer espaço interior nele para acrescentar uma meia-irmã” naquele momento.

Música e narrativa

Entre desejos irresolutos e embates íntimos, Julius se posiciona, então, para tomar a estrada rumo a essa geografia que há muito deixou para trás, a fim de se chegar a uma outra tão remota quanto. O motor é o concerto para violoncelo, aquele que, secretamente, acredita que dará sentido à sua vida. Mas eis que uma de suas malas se extravia no desembarque e, sem as gravações que serviriam de base para os estudos, terá que se valer da própria memória, que não detém de segurança.

Assis Brasil dá forma a um personagem internamente incompleto, que se transforma à medida que sua jornada toma desvios inesperados, e caminha para dentro de si, revelando-se uma arqueologia de afetos. A busca por um instante específico no qual é possível seguir em recomeço, mas também reparar erros e determinar pontos finais. O autor, que já foi violoncelista de orquestra, tem consciência da relação profunda entre vida e arte, associando a música à contextura narrativa para erguer atmosferas, marcar os saltos temporais, conduzir o ritmo e modular os espaços onde ocorrem os eventos, dos ambientes gerais aos mais íntimos.

Prova disso está num trecho em que dois personagens, agora envelhecidos, significam a vitalidade de seus sentimentos através da retomada de um concerto suspenso no tempo. É uma cena de alta voltagem emocional, com um simbolismo explícito, mas que se constrói nas nuances, nas interpenetrações suaves entre as palavras e suas sonoridades, dando conta de uma escrita refinada, que equilibra técnica e inspiração na costura de uma trama que envolve o leitor até seu desfecho. A certa altura, Julius afirma que “todos os livros são histórias de amor". E “O inverno e depois" é isso, afinal: uma história de amor que se afigura no primeiro acorde e segue viva em seu mais longínquo eco.

* Sérgio Tavares é escritor, autor de “Queda da própria altura” (Confraria do Vento)