Cultura

Uma charada em ‘Aquarius’

Romance de José Luiz Passos com ‘subtexto de resistência’aparece no filme de Kleber Mendonça Filho

Cena do filme “Aquarius”
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Cena do filme “Aquarius” Foto: / Divulgação

RIO — Numa das cenas do filme “Aquarius”, em cartaz desde quinta-feira, uma personagem retira cuidadosamente um livro da estante de uma livraria e o oferece à protagonista, Clara. Pelo close na capa do romance, fica nítida a intenção da sequência: despertar a curiosidade para a obra “O sonâmbulo amador”, do escritor pernambucano José Luiz Passos, lançado em 2012. Uma charada literária aos espectadores mais atentos, pois o objeto não reaparece em nenhuma outra cena do longa-metragem. Mas por que, afinal, o diretor quis usar esta referência em lugar de qualquer outro livro?

— Muita gente nem percebe. Foi uma ideia que tive dois ou três dias antes de começar a filmar. O livro aparecia ainda mais em outra cena, que também se passava na livraria da cunhada de Clara, mas acabei tendo que cortá-la. Como eu fazia questão de citar o livro no filme, deixei nesta cena, mesmo que rapidamente — conta o cineasta Kleber Mendonça Filho.

O diretor defende o romance como “um dos grandes livros recentes da literatura brasileira”, e justifica a escolha pelo fato de ser uma obra, antes de tudo, pernambucana.

— Li e fiquei fascinado. Sabe quando você encontra uma obra que é exatamente da sua geração, que trata dos mesmos temas, que usa o mesmo vocabulário? Ele viu as mesmas coisas que eu vi e que discuto no filme. O que eu faço no cinema é o que ele faz na literatura. E tem também, é verdade, um subtexto de resistência, de haver um romance pernambucano numa livraria de rua nos dias de hoje — detalha o diretor, de 48 anos.

Narrativa onírica

“O sonâmbulo amador” (Alfaguara, 2012) é uma espécie de filho fora do casamento do autor com seu primeiro romance, “Nosso grão mais fino”, de 2009. Quando fazia a pesquisa histórica para “Nosso grão...”, Passos conheceu Jurandir, um funcionário da indústria têxtil do interior de Pernambuco que tentava resolver uma pendenga trabalhista no Recife. Guardou a história do personagem para desenvolver no futuro, e anos depois, criou para o seu Jurandir uma trama marcada pela perda: nela, o protagonista, aparentemente sem razão, incendeia o carro da empresa, a caminho da capital pernambucana, e perde as rédeas das próprias ações. Jurandir é internado numa clínica psiquiátrica e, a pedido do médico, começa a escrever seus sonhos, numa narrativa onírica que se mistura aos relatos da internação, a episódios do passado e a opiniões soltas. Entre outras láureas, o livro ganhou, em 2013, o Prêmio Portugal Telecom (hoje chamado Oceanos).

Depois da estreia de “Aquarius”, o autor recebeu com surpresa as mensagens de amigos comentando que haviam visto o romance em destaque numa das cenas do filme. Há cerca de dois anos, Passos conheceu o diretor durante a exibição de seu longa anterior, “O som ao redor”, na UCLA, em Los Angeles, onde o escritor dá aulas de Literatura Brasileira. Passos presenteou o cineasta com o romance, mas não fazia ideia da referência até a semana passada. Apesar de ainda não ter tido a chance de assistir ao longa, que não estreou nos Estados Unidos, onde vive, o autor leu o roteiro e vê paralelos na trama das duas obras:

— Todo esse translado do homem do campo para a cidade, que é muito forte em Pernambuco, essa migração da elite, loteando bairros nobres do Recife, que é uma questão marcante tanto em “O som ao redor” quanto em “Aquarius”, é um fenômeno social que ambos vivemos muito na nossa geração, um sentimento muito intenso de perda. Mas há uma diferença de perspectiva: eu sou do campo, o Kleber é mais urbano.

“é verdade que Tem uma surpresa para mim?”

Além do tema, Passos, que lança novo romance no próximo mês (“O marechal de costas”, pela Companhia das Letras) acredita que a abordagem dos dois autores também seja parecida:

— É uma abordagem mais reflexiva, mais sociológica. “O som ao redor”, para mim, tem muito de “Sobrados e mucambos”, de Gilberto Freyre. Não tem aquele desbunde visual de “Boi Neon” ou o carinho pelos personagens de “Tatuagem”. Os filmes de Kleber têm diálogos mais lentos, cadência quase monocórdia, e meus romances são assim também. Vejo muitas semelhanças entre o primeiro que escrevi, “Nosso grão mais fino”, e “O som ao redor”. Não me surpreenderá que “O sonâmbulo amador” também tenha paralelos com “Aquarius”.

Sem saber como responder às perguntas dos amigos e leitores que queriam entender por que o livro aparecia daquela forma no longa-metragem, o autor não aguentou a ansiedade e mandou uma mensagem a Kleber anteontem: “É verdade que tem uma surpresa para mim no filme?”. O diretor respondeu com outra mensagem: “Tem um abraço para você”.

— Não é nenhum grande esquema, mas uma citação afetiva, como ter o cartaz de “Barry Lyndon” (de Stanley Kubrick, 1975) na sala do apartamento de Clara. Seria muito melhor ter este livro na estante daquela livraria pernambucana do que ter um, sei lá, “Como mentir usando números”, que vi outro dia numa vitrine e me horrorizei — ironiza Mendonça Filho.