Cultura Livros

Novo ensaio revê Artaud em traços, gestos e movimentos

Livro de Ana Kiffer analisa importância do ‘pensamento do corpo’ para o autor
"A cabeça azul", desenho de Antonin Artaud de 1946 Foto: Reprodução / Reprodução
"A cabeça azul", desenho de Antonin Artaud de 1946 Foto: Reprodução / Reprodução

RIO — Sofrendo com internações constantes em asilos psiquiátricos no seu último período de vida, o poeta, dramaturgo e escritor Antonin Artaud (1896-1948) tinha em mãos apenas precários cadernos escolares, nos quais rabiscava superando as dores dos agressivos tratamentos da época. Ao colocar esse exercício físico, psíquico e estético do traçar no cerne da derradeira fase de criação do autor francês, a pesquisadora e Professora do Departamento de Letras da PUC-RJ, Ana Kiffer, apresenta uma tese original. Em seu recém-lançado ensaio “Antonin Artaud” (EdUERJ), ela analisa a “plástica-poética do traço” do gênio maldito, que, ao aliar a escrita, o desenho e a rítmica poética intensificou a experiência de um singular “pensamento do corpo”, subvertendo os pilares dos modelos de reflexão europeus.

Qual a importância do pictórico na obra de Artaud, qual a relação entre o traço escrito e o desenhado, e como isso se relaciona com o “pensamento do corpo”?

Essa pergunta, num certo sentido é a que tento responder ao longo de todo o livro. De forma breve diria que o traço (e não apenas o pictórico), mas o exercício físico, psíquico e estético do traçar é o que configura todos os últimos anos de criação de Artaud, interno em asilos psiquiátricos durante a Segunda Grande Guerra, e por conseguinte entregue à precariedade encarnada nos cadernos escolares, que recebia no asilo de Rodez, e nos lápis com os quais escrevia. Essa prática vai aliar escrita, desenho e rítmica poética (algo entre a potência sonora e a potência escrita da palavra) no que chamo de uma plástica-poética do traço. Todo o corpo, em seus movimentos, gestos, batuques, intensidades compareciam como modus operandi dessa empreitada. Isso, aliado à trajetória de um ator e pensador do teatro indicará uma nova direção ao pensamento do corpo, já reivindicado por Artaud desde o inicio de sua trajetória quando da formulação de um “teatro da crueldade” .

Em sua pesquisa na França, você percorreu os múltiplos registros de Artaud (bilhetes, cartas, desenhos, roteiros), e fez questão de não separar a sua vida de sua obra. O que isso trouxe ao seu trabalho?

Esses registros, sobretudo os Cadernos e os desenhos ainda não tinham sido profundamente estudados. Até então as apreensões mais filosóficas ou aquelas que tomavam a vida de Artaud como caso a ser estudado através de sua obra prevaleciam. Nesse sentido fiz parte de uma geração que privilegiou a força poética, a materialidade da escrita, os diferentes suportes como modos de realização de uma obra que poderia finalmente integrar as discussões artísticas e literárias e não apenas as discussões psicológicas ou psiquiátricas que até certo ponto impediam a propagação da força, decerto desconstrutora, que encenavam seus textos, desenhos, cartas. A própria noção de literatura deve aí se mover. As "Cartas" e os "Cadernos" figurando não como testemunho da obra mas como centro-nodal da mesma. A obra ela mesmo aberta, falha, imperfeita. Erguendo-se em desabando. Desse modo paradoxal é como somos convidados a alterar a nossa percepção dessas categorias e noções. E como Artaud assim se aproxima, de modo radical, muito mais do contemporâneo do que de qualquer movimento de vanguarda.

Por que a experiência do corpo (ou da perda do corpo) é tão importante para o autor?

Porque Artaud se diz desde o primeiro momento de sua obra (inaugurada através da Correspondência com Jacques Rivière) ter sido abandonado pelo espírito. Na sociedade ocidental a noção de corpo que herdamos depende(ia) obviamente da noção de espírito que até certo ponto a sustentava, a submetia, corrigindo-a ou adorando-a. A perda do espírito desenha o arco da insurgência de novos corpos de sensibilidade que ele busca evocar e construir com sua obra.

Como o ato de dar “dignidade” ao pensamento de Artaud pode criar uma ruptura nos modelos de pensamento ocidental? Nesse sentido, que relação podemos fazer com o pensamento vigente no Brasil?

A vassoura, desenho de 1946 Foto: Antonin Artaud / Reprodução
A vassoura, desenho de 1946 Foto: Antonin Artaud / Reprodução

Dar dignidade ao pensamento de Artaud significa, em primeira mão, não circunscrevê-lo nesse largo cadafalso onde colocamos ‘os loucos’, ‘aqueles’ que dizem palavras sem sentido e que buscam apenas nos provocar ou ofender. Sob esse aspecto significa dar dignidade de pensamento àquilo que não necessariamente entendemos, ao que não se restringe a nossa lógica dominante, branca, ocidental. Artaud não veio estudar os índios do México, ele veio viver com eles a experiência de uma cultura viva. Que certamente desafia, como outras, a mentalidade ocidental. Na sua época era impossível isso ser absorvido. Devemos nos perguntar se ainda hoje! Sob esse ponto de vista ele deve ser atualizado no pensamento vigente no Brasil de hoje: como podemos ainda continuar, nesse país, cultuando apenas uma cultura branca e relegando à invisibilidade as culturas negras e indígenas? Noutro aspecto, não menos doloroso, o pensamento de Artaud deve também ser atualizado. Ele, que sofreu a expertise psiquiátrica, psicanalítica, crítica literária e foi por todas elas julgado e condenado, nos devolveu essa experiência com uma profunda reflexão sobre o desejo de julgamento que nos habita. Essa contribuição é fundamental para o Brasil de hoje não retornar ao mais sombrios efeitos do julgamento. Da política do manicômio ao manicômio da política, para “citar” Simão Bacamarte.

Sua tese teve orientação de Evelyne Grossman, editora das obras completas de Artaud. Como foi a interação com ela?

Evelyne Grossman foi para mim o primeiro grande encontro intelectual que vivi enquanto pesquisadora, na época, em 1998, iniciante, ainda em meu doutorado. Suas aulas encantavam o meu pensamento, e mesmo que não tenhamos compartilhado de todas as ideias acerca de Artaud ela foi a primeira pessoa a ter dado crédito ao meu trabalho. Incluindo meu livro (publicado em 2003 na Espanha) na lista dos quinze livros que selecionou para Gallimard como obras de referencia sobre Artaud. Depois estive seis anos como Diretora de Programa no Collège International de Philosophie em Paris quando ela era Presidente do mesmo, juntas realizamos Acordos, Orientações e Colóquios no Brasil e na França. Ela foi responsável pela reedição da obra de Artaud que estava parada na Gallimard desde a morte de Paule Thévenin. Trabalho hercúleo. Ainda esse mês sai no Brasil dois textos que traduzi ou editei dela, um pela 7Letras no livro que organizo, intitulado “Sobre o Corpo”. E outro, pela Zazie Editora, que introduz ao seu novo livro (ainda inédito) “Os Corpos Hipersensíveis”.

Você diz que o livro não buscou legados na obra do Artaud. Qual seria, então, a maneira mais apropriada de descrever a sua permanência?

É preciso entender que a permanência das ideias de um autor entre nós se dá de forma mais eficaz quando temos acesso à leitura de seus textos do que à mitificação de sua pessoa e sua vida. Para isso seria necessário investir mais em traduções e novos livros. Questão importante para o Brasil! Quando fiz referência ao legado queria apontar ainda para a necessidade de não nos preocuparmos tanto em formar "escolas" de pensamento ou de estilo que busquem “repetir fielmente” um autor, mas em atualizar, ou ao menos em interrogar a atualidade de suas propostas.