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Em livro, Eucanaã Ferraz organiza o baú de letras de Adriana Calcanhotto

Poeta e ensaísta dividiu por temas as canções que ‘sobrevivem’ sem melodia

Eucanaã e Adriana. O poeta selecionou 91 letras, das quais 18 são inéditas
Foto: Leo Aversa / Divulgação
Eucanaã e Adriana. O poeta selecionou 91 letras, das quais 18 são inéditas Foto: Leo Aversa / Divulgação

RIO — Na entrada da casa da Adriana Calcanhotto há um porta-retrato com uma imagem intrigante: a senhora Maria da Glória Assumpção Cunha, avó de Adriana, ao lado da filha, Morgada Cunha, ainda menina. As duas olham para o infinito, cercadas por vastas cabeleiras. Não há quem não fique hipnotizado pela cena ao entrar na casa da compositora — o amigo Waly Salomão até insistiu para que ela usasse o retrato como capa do disco “Fábrica de poema”, seu terceiro álbum, que se chamaria “Por que faço o que faço?”. Mas capa vai, capa vem, a foto só saiu da parede agora. Foi quando outro grande amigo, o poeta e ensaísta Eucanaã Ferraz, começou a remexer as memórias da artista para organizar um livro com suas letras de música.

— O livro é um inventário de belezas, de lembranças, e esta imagem não podia faltar. Ela mostra a linhagem de Adriana, que é uma história de mulheres. Curiosamente, mulheres com muito cabelo, quando Adriana quase não tem cabelo, não é? — diverte-se Eucanaã, que batizou a obra de “Pra que é que serve uma canção como essa?”, uma alusão à canção homônima de Adriana. — Havia muitas letras de canções inéditas, outras que ainda não tinham sido musicadas. Reuni as letras que sobreviviam no papel, mesmo sem a melodia. Qual foi meu critério? Tudo que a gente lê e acha bonito. Simples assim. Separei o material por blocos temáticos, também para descolar da ordem em que normalmente ouvimos as canções nos álbuns. Então chamei o designer Raul Loureiro, que transformou a seleção num objeto de arte.

No prefácio, Eucanaã faz um ensaio sobre a poética de Adriana. No texto, observa as dicotomias da obra da compositora, o que chama de “combinações desassombradas”: a maneira pela qual ela transita pelo experimental, mesmo estando no mainstream; seus minimalismos e apego aos excessos; os pés enfiados tanto na Bossa Nova quanto na Tropicália: “Observa-se, por exemplo, a busca por combinações desassombradas entre os repertórios da literatura, das artes plásticas de vanguarda e outras referências menos nobres, como canções de apelo romântico e de largo sucesso comercial”, escreve ele no prefácio.

— Por mais que um compositor tenha muitas referências literárias, como é exatamente o caso, a conversa dela não é exatamente com a literatura. É sempre é com a música popular. A linguagem dela é a da canção. E, dentro desta conversa, eu diria que o pilar de Adriana Calcanhotto é a Tropicália. Ela de fato comeu Caetano, como diz numa canção. Nessa operação antropofágica, de deglutir, ela sintetizou ele, regurgitando esta obra maravilhosa que conhecemos — reflete Eucanaã, que separou as 91 letras escolhidas em cinco eixos temáticos: “você” (canções amorosas); “agora” (sobre o tempo presente), “onde” (com referências a lugares e paisagens); “olhar” (com versos que giram à roda do mundo); e “verso” (que abordam a própria canção).

No início, Adriana ficou meio ressabiada com a ideia de fazer um livro a partir de sua obra — até porque, dentre as letras escolhidas, 18 são inéditas. Eucanaã escolhe a palavra: Adriana achou um pouco “cabotino”. Acatou o desejo do amigo, mas a coisa não andou muito. Passaram-se cinco anos, discos foram feitos, no meio do curso da vida, houve a morte de Susana de Moraes, que também afetou a introspecção de alguns trabalhos, entre eles o livro. Foi preciso esperar mais algum tempo. Que tanto Eucanaã quanto Adriana julgaram fundamentais para o rearranjo da resposta que a obra exige:

— Acho que este livro acaba respondendo a pergunta que Waly me fez lá atrás, quando sugeriu que o “Fábrica de poema” se chamasse “Por que eu faço o que faço?”. É curioso. A resposta veio agora, anos depois, neste trabalho lindíssimo que o Eucanaã concebeu, que além de tudo, traz a imagem da minha família em meio às letras...

“Pra que é que serve uma canção como essa?”

Organização: Eucanaã Ferraz.

Editora: Bazar do Tempo.

Preço: R$ 48.

Páginas: 192.