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Pilar del Río diz estar no Brasil por ‘dever cívico’

Em Paraty pela primeira vez, viúva de Saramago prepara edição ilustrada por J. Borges
SC - EXCLUSIVO - PARATY RJ - FLIP 2016 - 01/07/2016 - Pilar del RÃo na Casa Cais. Foto: Barbara Lopes | Agencia O Globo Foto: Barbara Lopes / Agência O Globo
SC - EXCLUSIVO - PARATY RJ - FLIP 2016 - 01/07/2016 - Pilar del RÃo na Casa Cais. Foto: Barbara Lopes | Agencia O Globo Foto: Barbara Lopes / Agência O Globo

PARATY - Pilar del Río, “que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”, como escreveu certa vez numa dedicatória o português José Saramago (1922-2010), seu marido nos últimos 22 anos de vida, tardou a chegar, é bem verdade, não só à vida do escritor, como à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Apesar dos inúmeros convites da organização do evento e da homenagem da festa feita ao escritor no ano da sua morte, em 2010, a jornalista e “presidenta” da Fundação Saramago nunca havia conseguido ir a Paraty. Esta é a primeira vez, e Pilar participa da programação da Casa Cais, que neste ano funciona como uma embaixada afetiva da língua portuguesa na cidade, idealizada e dirigida pela compositora Luana Carvalho.

Com a participação de nomes como o escritor angolano José Eduardo Agualusa, o artista plástico e escritor brasileiro Nuno Ramos, o escritor e professor de Letras da PUC-Rio Fred Coelho, o cineasta português Miguel Gonçalves Mendes e os cantores Marina Lima e Pedro Luís, o espaço vai abrigar debates e apresentações gratuitas até amanhã. Pilar conversa hoje com a jornalista portuguesa Anabela Mota Ribeiro, às 15h30m, e depois exibe o filme “José e Pilar”, de Gonçalves Mendes.

Ao GLOBO, Pilar conta que está envolvida num projeto especial: um grande encontro, póstumo e inédito, “entre os dois Josés”, Saramago e o artista brasileiro José Francisco Borges. Ideia de um editor argentino radicado em Barcelona, Alejandro García Schnetzer, a crônica fantástica “O lagarto”, escrita por Saramago em 1972 (texto em que o autor vislumbra uma flor vermelha caída no Chiado, e a Revolução dos Cravos só aconteceria em Portugal dois anos depois), ganhou xilogravuras exclusivas do artista pernambucano, que, aos 81 anos, abriu uma exceção para fazer esse trabalho, “que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”.

É a sua primeira vez na Flip, apesar de convites e homenagens em edições anteriores. Por que vir só agora?

Este é um ano muito particular. Vir ao Brasil, estar com pessoas que respeito e que não querem retroceder em direitos adquiridos, na educação, na cultura, nos valores partilhados, na liberdade, em suma, considero-o um dever cívico. Uma festa de cultura não pode viver arredada da realidade. Luana Carvalho e a Casa Cais convidaram-me a participar, e decidi aceitar. Será uma ocasião para voltar a falar de José Saramago e da necessidade que temos de continuar a ler os seus livros.

De que forma é possível aproximar ainda mais as literaturas de Portugal e Brasil? Apesar de compartilharem a língua, por que ainda há muitas lacunas de conhecimento entre ambas?

Os cidadãos, os leitores, nós, somos aqueles que aproximam as duas culturas, literaturas, formas de lidar com o idioma. É obrigação dos estados mostrar o que se vai fazendo, abrir as portas. Mas as pontes são construídas por nós, peça a peça, livro a livro, palavra a palavra. Lacunas... Muitas vezes devem-se a processos empresariais, editoriais, mais do que tudo.

A aproximação Brasil-Portugal permite uma infinidade de livros. Como “O lagarto”, que refresca a crônica de José Saramago com xilogravuras exclusivas de J. Borges. Como surgiu a ideia do livro?

Surgiu por proposta de um editor argentino, que vive há muitos anos em Barcelona, Alejandro García Schnetzer, que já havia feito um livro com um texto de Saramago e ilustrações de Manuel Estrada chamado “O silêncio da água”. A ideia foi pegar um texto publicado anteriormente, que tivesse autonomia e que permitisse ser ilustrado. Ficamos muito contentes com a resposta positiva do J. Borges, que abriu uma exceção e aceitou ilustrar esse texto de José Saramago, e pensamos que é um diálogo muito enriquecedor o que se estabeleceu entre os dois “Josés”.

Quando deve ser publicado no Brasil?

Não consigo adiantar uma data para já, isso depende da Companhia das Letras, editora que publica a obra de José Saramago deste lado do Atlântico, mas pensamos que será muito em breve. Em Portugal, haverá uma exposição com as xilogravuras em Óbidos. A apresentação mundial será feita no contexto do Folio, o festival literário de Óbidos, em setembro. Aparecerá então uma primeira edição do livro, que sairá em várias línguas nos próximos meses.

O que há de especial nesse texto?

É um texto publicado em 1972 no livro “A bagagem do viajante”, que pode ser lido por jovens e adultos e que, tal como outros textos de José Saramago, encontra ainda hoje, mais de 40 anos depois da sua publicação, novas leituras atuais. Tal como, por exemplo, em “A maior flor do mundo”, trata-se de um José Saramago que não faz concessões facilitistas e cria um texto em que dialoga com o universo dos contos de fadas, com o fantástico, a partir da história de um lagarto que passeia pelas ruas do Chiado, em Lisboa.

O que a senhora gostaria de fazer em Paraty: tem alguma mesa de debates em que está especialmente interessada, algum autor que queira conhecer, algum passeio que queira fazer?

A minha vontade é ser apanhada pela surpresa. O que implica o risco de não gostar. Ou seja, mais do que procurar os autores que gosto de ler, procurarei aqueles que ainda não li ou cujo pensamento conheço menos bem. Mas confesso que tenho uma especial curiosidade em relação às vozes femininas, tantas vezes esquecidas, descuradas... Além de imergir na poesia da homenageada deste ano ( Ana Cristina Cesar ), quero sentir a força de mulheres não recatadas, que fazem do mundo inteiro o seu lar, na cultura e na sociedade.