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Romance investiga a excêntrica relação entre o homem e os objetos

A escritora mexicana Valeria Luiselli lança na Flip ‘A história dos meus dentes’

Valeria Luiselli: “O que mais gosto em feiras literárias é de entrar em contato com autores locais”
Foto:
Daniel Shea
Valeria Luiselli: “O que mais gosto em feiras literárias é de entrar em contato com autores locais” Foto: Daniel Shea

RIO — Em meados do século XIX, surgiu uma profissão peculiar em Cuba: o “leitor de tabacaria”. Para diminuir o tédio do trabalho manual repetitivo nas fábricas de charutos, um dos operários lia histórias em voz alta para os companheiros, de Émile Zola a maçantes volumes sobre a história da Espanha. A prática espalhou-se pelas fábricas da América Latina no início do século XX, mas logo caiu em desuso.

A escritora mexicana Valeria Luiselli lembrou-se dos “leitores de tabacaria” quando foi procurada por uma galeria de arte contemporânea da Cidade do México para escrever um texto para o catálogo de uma exibição em andamento. Financiada por uma fábrica de sucos, a exposição beberia nos elementos comuns entre a vida dos operários da fábrica e a dos artistas da galeria — criando uma relação inesperada entre eles. Valeria propôs aos curadores escrever uma história sobre o universo artístico direcionada aos funcionários, a ser lida e comentada por eles, em encontros semanais.

Assim, entre sumos artificiais da empresa e a sede espontânea da autora, surgiu “A história dos meus dentes”, romance que lança na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), na próxima semana, e que foi apontado como um dos “livros do ano” de 2015 por publicações como “New York Times”. Que pouco tem a ver com os dentes da autora, aliás: esse não é mais um livro de autoficção, diz Valeria.

— O livro foi criado muito em cima das histórias dos próprios operários, dos comentários que eles faziam sobre os fascículos que eu enviava para a leitura em grupo — detalha Valeria. — A estrutura se impôs pelo fato de ser uma novela por encomenda, feita em partes. Era um compromisso escrever para os operários, contra o tempo, seguindo o ritmo da história da semana anterior, como se faziam os folhetins no século XIX. Quando se escreve assim, é preciso se agarrar a algo de cara.

Valeria agarrou-se a um incômodo que observava na relação entre artistas e obras:

— Eu queria entender o lugar do excêntrico, a importância da excentricidade no entorno da produção de um artista para a circulação e valorização da sua obra. E foi lendo uma enciclopédia de filosofia que encontrei uma definição para a excentricidade que tem a ver com as categorias matemáticas que uso para organizar a novela, como a hipérbole, o círculo ou a parábola. Todas são também formas literárias de contar uma história — conta Valeria.

Trajetória peculiar

“A história dos meus dentes” é um ensaio sobre o valor atribuído aos objetos que também reinaugura uma maneira de enxergá-los. Se a estrutura da novela brotou das condições de escrita, a trama acompanha a trajetória peculiar de Gustavo Sanchéz Sanchéz, o Estrada, um sujeito carismático, desses que começam a imitar Janis Joplin depois de duas doses de bebida. Estrada entra no ramo dos leilões como uma estratégia rápida para levantar dinheiro para comprar dentes novos.

No curso que faz para refinar a retórica — talento primal dos que conseguem vender uma tesoura aparentemente banal por quantias altíssimas —, o leiloeiro neófito aprende como contar uma história de forma a valorizar a peça, conquistando os possíveis compradores com hipérboles, alegorias, elipses, parábolas. Estrada não só compra novos dentes para si, como investe em cada canino ou incisivo uma história fabular — transformando o romance num legítimo “gabinete de curiosidades”. Nessa atmosfera kitsch, misturam-se informações supreendentes sobre a dentadura de Montaigne, John Lennon, Borges, Rousseau ou Virginia Woolf (que, segundo seu psiquiatra, tinha tantas bactérias na raiz de um dente que isso pode ter agravado seus males sentimentais, quiçá animado sua literatura).

— Pesquisei muitos detalhes biográficos, históricos, foi um trabalho extenso enriquecer a narrativa. Quando lançamos a edição em inglês, houve uma revisora que checou exaustivamente cada informação, separando as reais das inventadas, produzindo uma cronologia curiosa desses dados, como um mapa, que agora acrescentamos às novas edições. Foi engraçado ouvi-la dizer que as informações verdadeiras eram justamente as que pareciam mais excêntricas — observa a autora, que vai à Flip com o marido, também escritor, Álvaro Enrique (de quem a Companhia das Letras aproveita para lançar “Morte súbita”).

National Book Award

Nascida no México, Valeria tem 33 anos e mora hoje em Nova York, onde estuda Literatura Comparada na Universidade Columbia e faz colaborações para a revista “New Yorker”. Em 2014, ganhou o National Book Award pelo romance “Rostos na multidão”, também lançado no Brasil pela Alfaguara. O próximo livro será sobre os deslocamentos, especialmente de imigrantes, tema confortável à autora — Valeria passou a infância na Coreia do Sul, depois morou em África do Sul, França, Espanha e Índia. Do Brasil, guarda lembranças de visitas a Brasília e ao Rio de Janeiro, onde leu Clarice Lispector e ouviu Caetano Veloso. Hoje, lê “Um copo de cólera”, de Raduan Nassar. Na Flip, espera conhecer mais autores brasileiros da sua geração:

— O que mais gosto em feiras literárias, e em geral não gosto muito desses eventos, é de entrar em contato com autores locais e levar alguns livros bem escolhidos de autores que desconheço. Ainda mais na América Latina, onde há poucas chances de conhecer outros autores.