Cultura Livros

Eduardo Giannetti critica a modernidade em novo livro

'Trópicos utópicos' reúne microensaios do economista e fílosofo
O filósofo e economista Eduardo Giannetti Foto: Renato Parada / Divulgação
O filósofo e economista Eduardo Giannetti Foto: Renato Parada / Divulgação

RIO — Em setembro de 1996, ao participar do programa “Roda Viva” como um dos entrevistadores de Caetano Veloso, o economista e filósofo Eduardo Giannetti perguntou ao cantor e compositor se era possível o Brasil conquistar a civilização e, ao mesmo tempo, não perder sua “alma iorubá, selvagem, índia”. A busca dessa síntese, chamada por Giannetti de “trópicos utópicos” no programa, era, na sua opinião, o que guiava a obra do artista. Quase 20 anos depois da entrevista, o economista lança o livro de microensaios “Trópicos utópicos — Uma perspectiva brasileira da crise civilizatória” (Companhia das Letras), em que retoma a pergunta feita a Caetano (que assina a quarta capa do livro), mas agora num mundo à beira do colapso. Nas três primeira seções da obra, o economista faz uma dura crítica à “santíssima trindade” da modernidade — a ciência, a tecnologia e o crescimento econômico — para na quarta, e última, lançar as bases da utopia que o Brasil pode oferecer ao mundo. Com referências a poetas e pensadores de diversos campos e lugares, Giannetti acredita que a forma dos microensaios pode atrair “tanto o leitor preguiçoso quanto o leitor aplicado”.

— É um formato que sempre me atraiu na história da filosofia. Eu fiz a opção de empoderar o leitor. Não gosto dessa palavra, mas não tem outra em português ( risos ). O microensaio provoca o leitor a refletir a cada texto. Ele não precisa concordar com o livro todo, aceitar tudo que está ali. Isso estabelece um jogo ágil e dinâmico. Quem for estudar o livro, vai perceber que ele tem muito mais estrutura do que aparenta — diz o economista, em entrevista ao GLOBO por telefone, de São Paulo, onde mora.

O que o motivou a escrever esse livro? Ele parece ter sido gestado ao longo de bastante tempo.

Sem dúvida foi um livro de longa gestação, que se confunde com a minha própria trajetória. No início do meu doutorado, em Cambridge, minha preocupação central era a relação entre o homem e o mundo natural e as implicações ecológicas dessa relação. Depois, minha pesquisa foi para outro caminho, mas essa questão continuou comigo. Passei sete anos fora do Brasil, perdi completamente o contato com o país. Quando retornei, passei por um processo de “retropicalização” muito forte. O título do livro, inclusive, surgiu de um “Roda Viva” com o Caetano Veloso. Eu já tinha enviado o livro para o Caetano, e o meu editor, Luiz Schwarcz, teve a ideia de pedir para ele escrever o texto da quarta capa. Esse livro traz o meu reaprendizado do Brasil, que me fez apreciar coisas que não via antes. É uma perspectiva brasileira da crise civilizatória escrita por alguém que morou muito tempo fora do Brasil. É uma crítica à crise através de um olhar brasileiro. Eu tentei colocar ao longo do livro todo essa perspectiva do “Novo Mundo Tropical”, com raízes no modo brasileiro de ser e sentir.

Quais seriam os sinais visíveis da crise civilizatória que o mundo vive hoje?

Essa crise se desdobra em dois componentes principais. Há o limite objetivo da natureza em suportar um determinado modo de apropriação dos recursos naturais. A questão ambiental e climática é central no século XXI. Nós caminhamos rumo a um esgotamento. O outro componente é o sentimento de frustração com a vida apesar de todo o avanço da tecnologia, o que é captado em todas as pesquisas sobre bem-estar e felicidade. A essa altura do século XXI já está bastante claro que o mundo moderno não entrega o que promete. Por exemplo, a ciência desacredita a religião, mas o que fica no lugar? Resta um vazio, preenchido por versões caricatas e infantilizadas da religiosidade ou pelo consumismo desenfreado que não leva a nada. É o paradoxo de que o 5% mais rico da população mundial sente mais falta de bens materiais do que os outros 95%. O mundo tem hoje 7 bilhões de pessoas. Só que 1 bilhão responde por 50% de todas as emissões de gás carbônico. Outros 3 bilhões respondem por 45% das emissões e os 3 bilhões da base da pirâmide, por 5%. E são esses 3 bilhões que vão sofrer as piores consequências da extravagância do 1 bilhão que está no topo.

Essa reflexão sobre o mundo, colocada dessa maneira, é um pouco angustiante. Você é um homem angustiado?

Eu penso permanentemente nesses temas. As grandes questões pelas quais me interesso são de natureza religiosa, mas não sou religioso no sentido de aderir a um credo organizado. Tenho quase horror a religiões institucionalizadas e dogmáticas. Sou cético demais. Demorei muito para entender que não podia buscar as respostas para essas questões na ciência. Por suas características constitutivas, a ciência não tem como abordá-las. O máximo que a ciência faz é oferecer um nexo causal. No livro, dou o exemplo dos porquês. O pai que perde a filha e questiona o porquê. O médico dá uma explicação científica do que aconteceu. Mas esse porquê não chega nem perto de responder o questionamento do pai. Eu vivo uma situação curiosa.

Ao apontar a utopia brasileira, você exalta a mestiçagem. O que você entende por isso?

Entendo a mestiçagem do ponto de vista cultural. Aqui, ocorreu uma fusão singularíssima de três matrizes culturais de origens distintas: ameríndia, portuguesa-ibérica-europeia e africana. A nossa biodiversidade e a nossa diversidade sociocultural são os nossos trunfos frente à crise da civilização. Trata-se de aproveitá-las para lidar com os nossos desafios. No livro, eu apresento duas visões. A visão mimética pretende que a gente aprenda e copie, tanto quanto for possível, o modelo dominante, que hoje é o norte-americano. Já a visão profética contém em si um exagero, que todos teriam que ser como e aprender com o Brasil. É o caso dos Estados Unidos, que acham que todos devem ser iguais a eles. Isso não cabe. No entanto, não significa que não possamos ter a nossa visão, brasileira, do que seja a melhor vida. Não podemos nos contentar em ser uma cópia malfeita dos líderes do mundo ocidental, ao mesmo tempo que, afirmo isso, temos muito a assimilar da cultura científica-tecnológica. O que eu fiz foi dar uma visão analítica, utilizando a minha bagagem, para constituir uma coisa mais realista talvez dentro dessa perspectiva.

O Brasil acumula passivos enormes em relação a representantes dessas culturas, como os índios e os negros, por causa de violações históricas. Esse passivo deve ser enfrentado a partir dessa perspectiva?

Sim, essas questões devem ser enfrentadas por esse prisma. O racismo no Brasil é completamente diferente do norte-americano. Não adianta importar o modelo deles para lidar com isso. O racismo no Brasil tem uma natureza social, e não de raça. O abismo social no Brasil é de tal ordem que não dá para ter ideia do preconceito. Lá, foi uma experiência de outra ordem, de monstruosidade de separação. Os portugueses viveram oito séculos mantendo relações com os árabes, tinham um know-how para a diferença que os anglo-saxões nunca tiveram. E isso é muito fundamental na colonização brasileira. Gilberto Freyre captou isso muito bem, apesar de às vezes romantizar a situação do negro, e acabou injustiçado por outros pensadores.

SERVIÇO

“Trópicos utópicos — Uma perspectiva brasileira da crise civilizatória”

Autor: Eduardo Giannetti.

Editora: Companhia das Letras.

Páginas: 240 páginas.

Preço: R$ 49,90.