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Armando Freitas Filho lança livro que ‘trata muito da morte’

Poeta vai abrir a Flip discutindo obra da amiga Ana Cristina Cesar

Armando em sua biblioteca: ‘Ana só fez quatro livros, mas com eles construiu uma obra’
Foto: Leo Martins /
Agência O Globo
Armando em sua biblioteca: ‘Ana só fez quatro livros, mas com eles construiu uma obra’ Foto: Leo Martins / Agência O Globo

RIO — No novo livro de Armando Freitas Filho, “Rol” (Companhia das Letras), Ana Cristina Cesar é descrita como uma poeta que “pede, suplica/ por sucessivas leituras”. Mais de 30 anos depois da morte da amiga, Armando continua a ser seu leitor mais dedicado. Tanto que, mesmo não gostando de viajar, topou pegar a estrada para participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que neste ano homenageia Ana. Ele vai dividir a mesa de abertura do evento, na próxima quarta-feira, às 19h, com o fotógrafo Walter Carvalho, diretor de um documentário recente sobre Armando, “Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície”, que será exibido na sequência.

Armando e Ana foram amigos por mais de dez anos. Ao cometer suicídio, em 1983, ela deixou para ele a tarefa de cuidar de seus escritos. Armando levou dois anos para conseguir abrir as quatro caixas de papelão que recebeu dos pais dela (“A recepção da queda interminável/ vai se fazendo com horror/ raiva e caridade”, lê-se em um dos poemas de “Rol” sobre Ana). Desde então, ele organizou livros de poemas, diários, traduções e ensaios e o volume “Poética” (Companhia das Letras), com a obra reunida da autora. Assim, ajudou a consolidar o lugar da amiga na poesia brasileira.

— Ana só fez quatro livros, mas com eles construiu uma obra. E se infiltrou pela poesia de muita gente, deixou as marcas de uma maneira de falar desalinhada e surpreendente. Ela vivia pregando pequenos sustos no leitor — diz Armando, em sua casa, no bairro da Urca.

Mais de 30 anos depois da morte de Ana, Armando continua a se surpreender com a poesia da amiga. Foi nela que o poeta carioca de 76 anos encontrou a epígrafe para “Rol”, um verso antigo dela que condensa as preocupações dos poemas mais recentes dele: “As horas fundamentais já nos visitaram”. Em seu 17º livro, Armando revê temas que marcaram sua obra, como a passagem do tempo, as transformações do corpo e os mistérios da memória. Mas sempre sob nova luz.

— Cézanne pintou o Mont Sainte-Victore mais de 80 vezes. Morandi pintou garrafas incessantemente. Pancetti pintou cenas marinhas que são a própria insistência do mar em repetir-se. Meu caminho é esse. Cavar no mesmo lugar para me aprofundar, para ver se compreendo melhor ou de outra forma — diz o poeta.

Para Armando, “Rol” forma uma “trilogia da memória” com seus dois livros anteriores, “Dever” (2013) e “Lar,” (2009). Mas ele considera que suas maiores obsessões estavam anunciadas já no título dos primeiros poemas de “Palavra” (1963), seu livro de estreia: “Corpo” e “Casa”.

Em “Rol”, a casa da infância surge em vários poemas que remetem à família do poeta: “A porta fechada é o pai/ A fechadura é a mãe/A chave é o filho, sem cópia”. Outros versos retratam os efeitos do tempo sobre o corpo: “O rosto final se esboça no velho/ espelho da noite, antes do sono”. Atando as pontas da vida, da infância à velhice, Armando encara seu tema central neste livro: “a morte/ não tem poros”:

— O livro trata muito da morte. Foi pesado escrevê-lo. Porque afinal você vê, sem metáfora, que o túnel só tem boca, não tem saída.

Apesar da presença da morte, ou talvez justamente em desafio a ela, um sopro de vigor atravessa os poemas de “Rol”. Em vários deles, Armando descreve seu hábito de caminhar pelas ruas da Urca (às vezes, até o Catete). Longe de mero exercício físico, é parte importante do processo criativo de um poeta andarilho.

“CADA PASSO É UM PENSAMENTO’’

Esse processo é registrado em um dos poemas mais curiosos do livro, “Canetas emprestadas”. Quando tem uma ideia e precisa anotar um verso no meio da caminhada, Armando recorre a jornaleiros, comerciantes, porteiros ou pedestres. O poema imagina que tipo de escrita a caneta de cada um engendra. A do amolador “é uma faísca/ um risco, um guincho”, por exemplo, e a do florista “tenta um floreio, mas a mão/ que por empréstimo a empunha/ não sabe fazer desabrochar/ a flor”. Para não quebrar o encanto, Armando prefere sair para caminhar sem nada nos bolsos:

— Penso muito enquanto caminho, cada passo é um pensamento. Quando saio para andar nunca volto pior. Aqui na Urca, acho que sou conhecido menos como poeta e mais como um vizinho que gosta de caminhar. O pessoal me vê e diz: “Ô, andarilho!”.

O vigor da caminhada se reproduz na lida diária com os poemas. Armando escreve todos os dias no escritório de casa, ao qual se refere como “oficina”, em meio a livros e retratos autografados de seus quatro mestres, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar. Segue o método que gosta de definir como “trifásico”: primeiro escreve à mão, depois à máquina e, por fim, no computador.

Melhor exemplo dessa dedicação, a série “Numeral”, sequência de poemas numerados que ocupam uma seção de todos os seus livros desde “Máquina de escrever” (2003), chega em “Rol” ao item 177. O poeta já escreveu até o 231. E continua a trabalhar nesse “poema que não tem fim”, como diz Armando, que assim realiza uma ideia surgida em suas conversas com Ana Cristina Cesar, sobre o sonho de uma poesia que fosse contínua como a prosa.

Numa tarde chuvosa de terça-feira, no início de junho, descansava sobre a mesa da “oficina” de Armando o rascunho de um poema, com o título provisório “Todo dia”. Ainda estava longe de deixar o poeta satisfeito:

— Só sei que o poema deu certo quando me sinto exausto. O que não tem a ver com o tempo, e sim com a intensidade que ponho nele. Nesse poema quero falar das coisas que se perdem, que não consigo apanhar. Por enquanto, só um verso presta: “O cabide vazio da camisa vazia”. Ou seja, o nada. Começa daí.

“Rol’’

Autor: Armando Freitas Filho.

Editora: Companhia das Letras.

Páginas: 144.

Preço: R$ 39,90.