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‘A maçã’, revista de Humberto de Campos que chocou o Rio nos anos 1920

Publicação picante e inovadora tem sua história contada em livro
Capa da revista ilustrada "A Maçã" fundada por Humberto de Campos Foto: Divulgação
Capa da revista ilustrada "A Maçã" fundada por Humberto de Campos Foto: Divulgação

RIO - Entre as revistas ilustradas que se multiplicaram nas ruas do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, nenhuma provocou tanto frisson quanto “A maçã”. Dirigida pelo Conselheiro X.X., pseudônimo do escritor Humberto de Campos, a publicação circulou pela primeira vez no dia 11 de fevereiro de 1922. Seus contos de literatura galante, recheados de traições e desejos proibidos, caíram na graça do público, assim como suas ilustrações bastante picantes para a época. O número de estreia esgotou nas bancas e precisou ser reimpresso.

A revista também inovou graficamente. Por lá, passaram alguns dos grandes ilustradores daqueles anos, como K. Lixto e Andrés Guevara, que se tornaria um dos principais reformadores da imprensa brasileira nas décadas seguintes. Essa história é recuperada no livro “A maçã: O design gráfico, as mudanças de comportamento e a representação feminina no início do século XX” (Ed. Senac), fruto da pesquisa de mestrado da designer Aline Haluch na PUC-Rio. O lançamento será no dia 22 de junho, às 18h30m, no Centro Carioca de Design, na Praça Tiradentes.

— Havia muitas revistas ilustradas no início do século porque o índice de analfabetismo no Brasil era muito alto. Quando entrei nesse universo, o que me chamou a atenção foi o tratamento do miolo na revista. As bordas e as ilustrações que envolvem o texto fazem um casamento da linguagem visual e verbal — explica Aline.

PSEUDÔNIMOS

A pesquisadora conta que também se surpreendeu com o tratamento dado à mulher. Não havia mulheres na redação de “A maçã”. A única colaboração feminina eventual era a da escritora Gilka Machado. Aline destaca, a respeito disso, os contos do criador da publicação.

“O Humberto de Campos falava da mulher, das melindrosas, das prostitutas, de maneira positiva. Não tinha uma visão pejorativa dessas moças. Era algo engraçado, ridicularizava os homens, que muitas vezes se tornavam escravos delas”

Humberto de Campos
Escritor

— O Humberto de Campos falava da mulher, das melindrosas, das prostitutas, de maneira positiva. Não tinha uma visão pejorativa dessas moças. Era algo engraçado, ridicularizava os homens, que muitas vezes se tornavam escravos delas. Não é o clichê do homem que ridicularizava a mulher. Campos invertia os papéis sociais e contava histórias, por exemplo, de mulheres jovens casadas com homens mais velhos, sendo que elas tinham amantes — diz Aline.

O uso de pseudônimos era generalizado em “A maçã” por causa das reações raivosas que provocou por afrontar a moralidade conservadora do início do século. Colega de Campos na Academia Brasileira de Letras (ABL), o intelectual católico Jackson Figueiredo escreveu em 1925: “Quanto aos poetas (eleitos para a ABL), reclama-se algum cuidado. Mudam frequentes e às vezes para pior. Lembra-me bem que com muito entusiasmo votei no Sr. Humberto de Campos, o poeta da ‘Poeira’... Não tenho culpa se depois sobreveio o aguaceiro e aquela poeira astral se transmudou em maçã deteriorada”.

No “Diário secreto”, publicado apenas 15 anos após sua morte, o escritor distribui críticas e semeia intrigas acerca de seus contemporâneos. Alguns desses episódios foram, inclusive, fontes de inspiração para os seus contos galantes.

TRANSFORMAÇÕES GRÁFICAS

Capa da revista ilustrada "A Maçã" fundada por Humberto de Campos Foto: Divulgação
Capa da revista ilustrada "A Maçã" fundada por Humberto de Campos Foto: Divulgação

Durante a sua curta existência, entre 1922 e 1929, a revista passou por algumas transformações gráficas. A principal foi após a chegada do paraguaio, radicado em Buenos Aires, Andrés Guevara. Sua chegada coincide com a mudança principalmente da capa: o título, a data e o número passaram a fazer parte da ilustração e não há mais um cabeçalho.

— Havia uma grande efervescência tipográfica, diferentes tipos de letras. Isso não era uma coisa usual na época, foi inovador — destaca Aline.

O caricaturista Cássio Loredano, autor de “Guevara e Figueroa: caricatura no Brasil nos anos 20” (Ed. Funarte), aponta que Guevara trouxe alguns traços cubistas ao país.

— Ele influenciou todo mundo, ao introduzir geometrizações e trabalhos em meio-tom, meio cubístico, com muito uso de lápis e pincel, não mais apenas nanquim. O próprio J. Carlos sofre uma certa influência — afirma Loredano.

Apesar de ser lançada no mesmo ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, “A maçã” não incorporou as características do movimento paulista, como as linhas retilíneas. Apesar disso, a revista refletia a modernização que o Rio de Janeiro vivia na Belle Époque, como a criação de espaços de lazer.

— A revista tem um traço particular, que passa pelo espírito da cidade, transformada pela difusão da energia elétrica e do cinema — diz Aline.