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Crítica: Dezsö Kosztolányi e olhar irônico sobre a humanidade

Obra do húngaro ganha reedição no Brasil depois de 20 anos

RIO - A nova edição de “O tradutor cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti”, do húngaro Dezsö Kosztolányi — publicada 20 anos após sua primeira edição no Brasil —, é a chance de conhecer melhor um dos mais instigantes autores da literatura moderna da Hungria. A coleção Leste, nesse sentido, continua sendo uma importante porta de entrada para a produção literária dos países dessa região da Europa. Em cena, a prática tradutória como esforço ético e cultural de aproximação com o outro — esforço que, entre outras coisas, materializa-se na cuidadosa tradução de Ladislao Sazbo.

Escritos por Kosztolányi nos últimos anos de sua vida, os 13 contos desse livro narram as aventuras de Kornél Esti na Budapeste e em outras cidades europeias dos anos 1920. Esti revela os bastidores de uma cena literária, expondo, em “O pai e o poeta”, a mesquinhez e o egoísmo próprio ao pedir opinião a um amigo, preocupado com o filho doente, sobre um poema que ele acredita ser “uma criação duradoura”. Revela, de alguma forma, como muitos manuscritos não são lidos quando entregues a alguém, como no caso de “O manuscrito”. Esti, em “O dinheiro”, inventa uma série de artimanhas para distribuir uma herança que recebeu de uma tia com o fim de não estragar sua reputação de poeta. A cena literária atravessa os contos de Kosztolányi não só com o sentido de relevar comportamentos vaidosos, mas também no diálogo que é estabelecido, por exemplo, com Charles Baudelaire em “O chapéu”, uma espécie de “tradução” de “A perda da aureola” com toques das gags de Buster Keaton.

Capa do livro "O tradutor cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti", do húngaro Dezsö Kosztolányi Foto: Divulgação
Capa do livro "O tradutor cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti", do húngaro Dezsö Kosztolányi Foto: Divulgação

Interessante, ainda nesse aspecto, é a história do amigo poeta de Esti contada a partir da classificação das fases de sua miséria em “período lírico”, “período narrativo” e “fase dramática”. Aliás, é a partir de dramatizações — de uma “tensão dramática” nas palavras de Esti — que os encontros acontecem. É assim que o protagonista do livro estabelece uma relação de cuidado e afeto com um farmacêutico “atônito” e “abatido como um suicida” no conto “O farmacêutico e ele” — é a figuração de uma cena que irá permitir uma experiência do olhar mais ética.

Em “O desaparecimento”, o sumiço de um empresário é a possibilidade de investigar o comportamento humano em situações limites, em esforço que Esti solicita para “entender as pessoas”. Já em “O salva-vidas” é a ideia de gratidão que é colocada em dúvida, daí a quase morte do personagem principal — em uma passagem que há uma reflexão sobre o medo — se transformar, na verdade, em seu quase martírio.

A morte é outra questão presente em “O tradutor cleptomaníaco”. Aparece no sonho recorrente que Esti — “em média cinco ou seis vezes por ano” — tem sobre o final dos tempos no delicioso “O fim do mundo”, quando a “multidão aterrorizada” descobre que só tem mais três dias de vida. Daí uma série de vontades que Esti só consegue realizar porque o fim do mundo as justifica. Em “O presidente”, a morte é driblada ao máximo pelo personagem que dá nome ao conto, pela capacidade de dormir nas conferências que presidia — sono que lhe dava o aspecto de “estátua enigmática” e parecia acompanhar o gênero de cada uma das apresentações. Por fim, é a própria morte de Esti — também conferencista em “A derradeira conferência”, descrita em tons que antecipam as cenas de vertigem de Hitchcock — que será encenada como uma morte bastante narcísica.

Exercício de ironia que, assim, mina qualquer tentativa de enaltecimento dos personagens, incluindo o protagonista, e que não pacifica a maneira como Kosztolányi, ou o Esti, observa a humanidade. É a ironia que, sobretudo, mais de 80 anos após a publicação original de “O tradutor cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti”, o torna um livro atualíssimo. Em “A mentira”, Esti afirma de modo preciso: “Só o inverossímil é realmente verossímil, só o inacreditável é realmente acreditado”. Sua afirmação parece desmontar a lógica das narrativas contadas pelo personagem de Kosztolányi na Hungria dos anos 1920 e, muitas décadas depois, ainda contadas e acreditadas. Ao contrário do que acontece com Esti, em “O presidente”, não há nenhuma chance de dormir lendo esse livro, ouvindo essas histórias.

*Franklin Alves Dassie é professor adjunto de Teoria da Literatura na Universidade Federal Fluminense

“O tradutor cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti’’

Autor: Dezsö Kosztolányi

Editora: 34

Tradução: Ladislao Szabo

Páginas: 136

Preço: R$ 34

Cotação: Ótimo