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Ricardo Araújo Pereira: 'O ser humano ri porque sabe que vai morrer'

Diz o humorista português do site Gato Fedorento confirmado na Flip

O humorista português Ricardo Araújo Pereira será um dos participantes da Flip
Foto: Paulo Novais / Paulo Novais/Divulgação
O humorista português Ricardo Araújo Pereira será um dos participantes da Flip Foto: Paulo Novais / Paulo Novais/Divulgação

RIO — Um de seus padrinhos literários é o escritor Luis Fernando Verissimo, que leu textos seus ainda verdes e mandou dizer-lhe por recado que “era muito bom no que fazia”. Um de seus fãs mais aguerridos é o também humorista e escritor Gregorio Duvivier, para quem Ricardo Araújo Pereira é “o cara”. E, apesar de ser um verdadeiro popstar em Portugal (se tomarmos como parâmetro um sujeito que já não pode andar sozinho pelas ruas, tantos são os fãs a puxar-lhe a camisa, a pedir-lhe selfies e beijos), RAP, como é mais conhecido entre os conterrâneos, ainda pode andar sozinho pelas ruas daqui. Pelo menos poderá até a última semana de junho, quando vem ao país participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) como um dos convidados da Tenda dos Autores.

Em Paraty, vai lançar um livro feito especialmente para o público brasileiro, “A doença, o sofrimento e a morte entram num bar” (Tinta da China Brasil), sobre a escrita do texto de humor. Será sua segunda obra publicada no país — a anterior é a coletânea de crônicas “Se não entenderes eu conto de novo, pá”. Ao GLOBO, Ricardo falou de humor e política — que certamente será um dos seus temas na Flip ( a Festa, aliás, confirmou mais dois autores convidados, como antecipou ontem o colunista Ancelmo Gois: os mexicanos Valeria Luiselli e Álvaro Enrigue ). Leia a entrevista de Ricardo a seguir:

Em outubro, você dividiu uma mesa no Festival Literário de Óbidos, em Portugal, com Luis Fernando Verissimo, e ambos foram ovacionados ao fazerem comentários políticos. Você já disse que o assunto que mais lhe dá audiência é a política. Não tem futebol, sexo ou religião que tire o reboliço que a política traz a um humorista. O Brasil passa por um furacão neste aspecto. Na Flip, você falará de política?

Sim, disse que as pessoas se interessam por humor político, mas isso coloca, normalmente, um problema: de acordo com a minha experiência, a discussão sobre sátira política é quase sempre dominada pelas pessoas que se interessam mais por política do que por sátira. Essas pessoas, às quais parece escapar o fato importante de, na expressão “sátira política”, sátira ser substantivo e política adjetivo, dividem-se em dois grupos: as que consideram que o humorista deve ser imparcial (normalmente as que discordam do que supõem ser a opinião do humorista) e as que pensam que o humorista deve ser um justiceiro que derruba governos iníquos e faz eleger políticos sensatos (normalmente, as que concordam com o que imaginam ser a opinião do humorista). Ambos os grupos acreditam que o humor é mais poderoso do que na verdade é, e ignoram que o trabalho do humorista é mais difícil e mais importante do que transformar o mundo: é fazer rir. É uma tarefa que eu levo a sério. Pelo menos, tão a sério quanto Brás Cubas, a personagem de Machado de Assis, leva as suas memórias: “mais do que passatempo, menos do que apostolado”. Acho que essa é a medida certa.

Sobre o que exatamente será “A doença, o sofrimento e a morte entram num bar”, livro que vem lançar no Brasil?

O subtítulo é mais explicativo: “Uma espécie de manual de escrita humorística”. É uma tentativa de pensar acerca de um ofício que, na opinião de muitas pessoas, está ao alcance apenas de alguns escolhidos, que nascem com um dom especial. Não é a minha opinião. Creio que aquilo a que chamamos “sentido de humor” é um modo especial de raciocinar, assim como a filosofia — com a qual o humor tem, acho eu, várias afinidades.

Afinal, o que ocorre quando os três entram no bar?

Provavelmente, alguma coisa engraçada. Esses são os temas da comédia. Ninguém ri do que é bom, do que é correto ou do que é alegre. Molière escreveu sobre misantropos, hipocondríacos, avarentos, hipócritas, alpinistas sociais. Os bons sentimentos não têm graça.

Você acredita que há um interesse súbito do público pelo modus operandi do texto de humor, talvez pelo sucesso de programas como o “Gato Fedorento”, em Portugal, ou o “Porta dos Fundos”, no Brasil?

Da minha parte, houve sempre. Gosto de ver o que acontece ao rosto de uma pessoa quando ela ri. O ato de rir distingue-nos dos animais e de Deus (pelo menos, o Deus da Bíblia). João Crisóstomo terá sido o primeiro a notar que Cristo chorou duas vezes (quando vê Jerusalém e quando Lázaro morre), mas não riu nenhuma. A minha hipótese é que o ato de rir está relacionado com a consciência da nossa própria extinção. O ser humano é o único que ri porque é também o único que sabe que vai morrer. Os animais não sabem, e Deus é eterno. Só ri quem convive com essa informação terrível.

Você também já disse que “ninguém é feio rindo”. Falando de beleza, ano passado a poeta portuguesa Matilde Campilho saiu da Flip chamada de “musa”. Teria graça ser eleito “muso da Flip”?

Tendo em conta os atributos, não apenas físicos, da Matilde Campilho, é compreensível que ela tenha sido considerada a “musa da Flip”. Tendo em conta os meus, é improvável que me aconteça o mesmo...

“O ser humano é o único que ri porque é também o único que sabe que vai morrer. Os animais não sabem, e Deus é eterno. Só ri quem convive com essa informação terrível.”

Ricardo Araújo Ferreira
Escritor e humorista

Voltando ao tema que dá mais audiência para o humor, como você disse: o que mais te impressionou neste processo do impeachment da presidente Dilma Rousseff?

Impressiona-me que, no Brasil, a política esteja ausente da discussão política. A luta política transforma-se apenas em luta. Há conversas sobre o Fla-Flu mais sofisticadas e menos sectárias. Mas o mais assustador talvez seja isto: a presidente é acusada de manipular ilegalmente as contas do Estado. O ex-presidente é acusado de lavagem de dinheiro. O candidato derrotado na corrida à presidência é acusado de ter recebido propinas. O presidente do parlamento é acusado de ter cinco milhões não declarados na Suíça. Ou seja, os brasileiros sabem que aqueles que os governaram, governam, e poderão vir a governar são todos acusados de ilegalidades. O que é estranho no meio disto tudo é que o Brasil seja o país do carnaval. O carnaval é um breve momento de loucura isolado no meio do cotidiano sério. Para desenjoar da austeridade do mundo, há uma semana em que tudo fica às avessas. Ora, no Brasil, a regra é estar tudo às avessas. O carnaval é redundante. O Brasil devia ser o país da Quaresma.

Qual a última piada boa que ouviu?

Acabei de ler uma num livro sobre o humor e o Holocausto. Um comandante da Gestapo diz a um prisioneiro judeu: “Vou dar-te uma oportunidade. Eu uso um olho de vidro, mas está tão bem feito que nunca ninguém descobriu qual dos dois é. Se adivinhares, não te fuzilarei”. O judeu responde imediatamente: “É o olho esquerdo”. O oficial nazi pergunta: “Como é que descobriste?”. O judeu: “É que parece mesmo humano”.

FALANDO BEM DE-VA-GAR

Quando vem ao Brasil de férias (ele gosta muito de Salvador) ou para se apresentar em São Paulo, Ricardo naturalmente co-me-ça a fa-lar mais de-va-gar. É um truque para que o sotaque lisboeta não atrapalhe a compreensão das piadas pelo público brasileiro — e, mesmo de férias na Bahia, com a mulher e as duas filhas, ele distribui piadas sem parar. RAP, como é conhecido pelos portugueses, não resiste a nenhuma delas.

Filho de um piloto da TAP e de uma comissária de bordo, Ricardo Araújo Pereira desde cedo demonstrava talento para o humor. Formou-se em Comunicação Social, trabalhou no “Jornal de Letras, Artes e Ideias” como comentarista de TV, e depois foi fazer roteiros de programas humorísticos. Paralelamente, começou a escrever crônicas para jornais como “Expresso” e “Diário de notícias”, sempre misturando críticas ácidas a piadas fartas, o que levou-o a esquetes de stand-up comedy. Depois, criou o programa humorístico “Gato fedorento”, junto com outros três participantes. Foi um sucesso que o levou a despontar como popstar. E suas apresentações passaram a atrair multidões em Portugal (e pelo mundo via internet).

Hoje, aos 41 anos, ele escreve crônicas para a revista “Visão” e eventualmente para o jornal “Público”. Também integra o programa de debates “Governo sombra” na RTP. E é autor de livros como “Boca do Inferno” (com o qual ganhou o Grande Prêmio da Crônica, da Associação Portuguesa de Escritores), “O futebol é isto mesmo (ou então é outra coisa completamente diferente)” e “Mixórdia de temáticas”. Em 2009, ganhou o Prêmio Arco- íris, da Associação ILGA de Portugal, por atuar no combate à homofobia.

Com a carreira consolidada em Portugal, Ricardo começou a testar a plateia brasileira há três anos, apresentando-se na casa de espetáculos paulistana Risadaria — sem-pre fa-lan-do mais len-ta-men-te.