RIO - O livro mais recente do poeta Douglas Diegues foi lançado simultaneamente no Brasil e em mais seis países: Paraguai, México, Argentina, Chile, Peru e Espanha. A façanha, rara para um autor brasileiro que não seja Paulo Coelho, só foi possível porque a obra circula às margens do mercado tradicional. Escrito em portunhol selvagem, mistura de português, espanhol e guarani criada por Douglas, o volume de poemas “Tudo lo que você non sabe es mucho más que todo lo que você sabe” foi publicado por um pool de sete editoras cartoneras, que usam papelão e material reciclado para produzir livros baratos e artesanais em tiragens limitadas.
Surgido na Argentina, na década passada, o movimento das cartoneras (expressão derivada da palavra em espanhol para papelão, cartón) se espalhou pela América Latina e ganha força no Brasil. O lançamento internacional de Diegues, em pool liderado pela Vento Norte Cartonera, da cidade gaúcha de Santa Maria, é um dos exemplos da articulação cada vez maior das cartoneras brasileiras. Driblando a crise com criatividade, elas publicam autores novatos e nomes conhecidos, como Manoel de Barros, Alice Ruiz e Haroldo de Campos, a preços médios de R$ 10 a R$ 20. Entre as dezenas de iniciativas no país, há desde projetos já tradicionais, como a Dulcineia Catadora, fundada em 2006 em São Paulo, aos mais recentes, como o coletivo Liga Cartonera, baseado em Pernambuco.
MOVIMENTO SURGIU EM BUENOS AIRES
O próprio Diegues é criador de uma cartonera, a Yiyi Jambo. Foi fundada em 2007, em Assunção, quando ele vivia no Paraguai, mudou-se para Ponta Porã (MS) e agora será transferida para Campo Grande (MS), onde Diegues vai abrir um “ateliê cartonero” com oficinas para o público. A estética da editora é influenciada pelo trânsito. Este ano, Diegues criou o selo Expresso Muamba, em parceria com o poeta mineiro Bruno Brum, que já lançou livros de Wilson Bueno, Josely Vianna Baptista e Ricardo Aleixo. Seguindo a filosofia cartonera de tornar cada exemplar único, as capas de papelão são enfeitadas com fios de fibra de caraguatá das índias nivaklê do Chaco paraguaio.
— Cada capa de Yiyi Jambo es como um beso que nunca se repete. Yiyi Jambo é uma cartonera on the road, nômade, en trânsito pelo sertón. Queremos seguir avanzando ao encontro de novos leitores — diz, em bom portunhol selvagem, Diegues, que sonha com uma Bienal do Livro Cartonero para dar conta do crescimento do setor. — As cartoneras estão se multiplicando no Brasil e no resto do mundo de forma discreta mas constante. Parece que a cada dia surge uma nova cartonera no Brasil, somos poucos, mas somos muitos.
Essa filosofia surgiu com a editora argentina Eloisa Cartonera, em 2002, em meio ao colapso econômico e político no país, que provocou uma sucessão de cinco presidentes em 12 dias. Sem dinheiro para manter sua antiga editora, o poeta Washington Cucurto encontrou uma saída nas montanhas de entulho que cobriam as ruas de La Boca, em Buenos Aires. Começou a fazer livros com capas de papelão, com o título e o nome do autor pintados em cores chamativas.
A Eloisa Cartonera ganhou a simpatia de leitores e atraiu para seu catálogo alguns dos principais autores argentinos, como Ricardo Piglia, César Aira e Tomás Eloy Martinez. Publicou também muitos estrangeiros, inclusive brasileiros, como Waly Salomão, Jorge Mautner e Paulo Leminski. Participou até da Feira do Livro de Frankfurt, em 2010, quando a Argentina foi o país homenageado — em meio aos estandes das maiores editoras do mundo, destacava-se a barraquinha que oferecia livros de papelão feitos na hora, em minutos.
— Eloisa nasceu da necessidade de publicar livros em uma situação muito adversa. O país estava mal, o papel era caríssimo e a cultura estava em segundo plano por causa da crise — diz Cucurto, que enxerga um reflexo da “identidade latino-americana” no movimento. — Cartonera não é só papelão. Tem a ver com uma maneira de ser e de ver a cultura, mais espontânea, intrépida e um tanto apressada, como somos os latino-americanos.
A difusão do movimento na América Latina deve muito às oficinas realizadas por Cucurto e sua equipe por todo o continente desde a década passada. Numa delas surgiu a primeira cartonera do Brasil, Dulcineia Catadora, fundada pela artista Lúcia Rosa depois de colaborar com a Eloisa Cartonera na Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 2006. Com experiência no uso de papelão em suas obras, Lúcia passou a ensinar filhos de catadores de papel da cidade a confeccionar livros.
TRABALHO SOCIAL COM CATADORES
Hoje, a Dulcineia funciona dentro da Cooperativa de Catadores da Baixada do Glicério (CooperGlicério), no Centro da capital paulista. Em dez anos, a editora já lançou mais de cem títulos, incluindo autores como Paulo Scott e Joca Reiners Terron. Nos últimos tempos, tem se concentrado em livros concebidos pelos próprios catadores, com textos, entrevistas ou trabalhos visuais, como a série de livros de fotos “Fábio Catador”, de Fábio Morais.
— Muitas cartoneras são fundadas por escritores, mas temos uma abordagem diferente. Nosso trabalho é mais social e político do que editorial, o livro é resultado de um processo de troca. Quando o catador pode fazer e vender os livros, ele rompe com a imagem de excluído e passa a ser visto de forma diferente — diz Lúcia, que também realiza oficinas por todo o país.
Foi numa delas, em Garanhus (PE), em 2012, que o pernambucano Wellington de Mello aprendeu a fazer livros cartoneros. No ano seguinte, fundou no Recife, onde vive, a Mariposa Cartonera, para publicar um livro que escreveu para o filho, “O caçador de mariposas”. Desde então, lançou mais de 20 títulos, de autores da cena local a escritores como Marcelino Freire e Ronaldo Correia de Brito. Em 2014, publicou “Inquebrável”, reunindo ensaios, artigos, contos e poemas em defesa do movimento Ocupe Estelita, de 48 autores, como Antonio Prata e Raimundo Carrero.
Mello também passou a realizar oficinas, que já deram origem a novas cartoneras, do Rio Grande do Norte a São Paulo. Além disso, fundou em 2015 a Liga Cartonera, coletivo informal que aproxima editoras do Brasil e do mundo para trocar experiências e criar novos projetos. O mais recente é uma edição de “Le Petit Prince Cartonero”, colaboração entre a Mariposa e a francesa Kartocéros Éditions, com ilustrações da hispano-brasileira Alicia Cuerva que reinventam o clássico de Saint-Exupéry com um protagonista mulato. A primeira edição é em francês, mas já estão nos planos versões em português e espanhol.
— O fato de não termos em Pernambuco uma cadeia do livro desenvolvida fez com que as cartoneras se tornassem uma alternativa para a distribuição, principalmente no interior — diz Mello, citando como exemplo o sucesso do último livro do poeta Miró da Muribeca, “aDeus”, lançado pela Mariposa em agosto de 2015. — Miró é muito popular aqui, mesmo não publicando por grandes editoras. Esse livro vendeu quase 2 mil exemplares sem entrar numa livraria.