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Crítica: Bataille e o questionamento sobre a essência da literatura

Em ‘A literatura e o mal’, escritor francês analisa autores românticos e modernistas
O escritor francês Georges Bataille Foto: Divulgação
O escritor francês Georges Bataille Foto: Divulgação

RIO - Como parte do esforço louvável de recuperar a obra do escritor francês Georges Bataille em novas edições, a editora Autêntica lançou agora “A literatura e o mal”, coleção de ensaios dedicados à literatura, de 1957, traduzida de modo preciso por Fernando Scheibe. Dentro da vasta obra de Bataille, a literatura e o estudo de sua importância antropológica ocupavam uma posição privilegiada. Bataille escrevia romances e novelas eróticas, e não é por acaso que seus estudos a partir da perspectiva do proibido questionam a liberdade particular que caracteriza a literatura genuína.

O argumento fundamental é que lidar com o mal, imaginar o mal e realizar o mal poeticamente, literariamente é propriedade que expressa o que Bataille vê como a liberdade essencial da literatura. Sem liberdade, a literatura não existe; sem vontade de romper os limites da proibição e transgredir a lei de maneira soberana, ela não consegue escapar do tédio e do moralismo.

Os ensaios do livro foram todos escritos depois da Segunda Guerra. Com exceção daquele sobre Michelet, que foi prefácio para o estudo clássico “A bruxa”, todos os outros foram publicados na revista “Critique”, criada pelo próprio Bataille em 1946. Os autores tratados situam-se em dois grupos, os românticos — Marquês de Sade, William Blake, Emily Brontë, Charles Baudelaire, Michelet — e os modernistas — Proust, Kafka e Jean Genet. Nesse rol de autores malditos falta Lautréamont, comenta Bataille, excluído por ser óbvio demais. Poderíamos identificar outras ausências, como Poe ou Céline, mas a intenção obviamente não era fazer um mapeamento sistemático do tema. Entretanto, aparece nessa escolha uma visão particular da emergência da literatura em seu sentido moderno, não com Flaubert no século XIX, mas com o romantismo gótico do século XVIII. O apagamento da retórica e a desaparição das funções cerimoniais da literatura clássica abrem espaço para uma literatura com uma dimensão singular e essencial de eficiência estética ligada à ética imanente de buscar o mais escondido, o mais penoso de dizer e de mostrar, enfim, o mais proibido e o mais escandaloso. Desse modo, a literatura moderna nasce sob o signo de um duplo escândalo, pela transgressão negativa de todo sentido moral e pela realização discursiva de sua realidade infame. É essa ambiguidade entre um crime que se põe em discurso e uma escrita que se torna criminosa que Bataille valoriza nos autores culpados.

DISCUSSÕES EM ABERTO

Na edição de 1957, “A literatura e o mal” não apresentou qualquer grande esforço de unificar as discussões. Em alguns ensaios, Bataille analisa a obra do autor, em outros discute críticas de terceiros sobre a obra do autor e não necessariamente dentro da mesma perspectiva teórica. O mal não recebe em momento algum uma análise sistemática, sempre é abordado a partir de aspectos diversos. Nos dois ensaios sobre Charles Baudelaire e Jean Genet, o alvo do esforço crítico são monografias de Jean-Paul Sartre que servem de estopim para Bataille esclarecer as próprias ideias.

Entretanto, não há dúvida de que o conjunto de textos reflete um período de maturidade criativa na obra do autor, entre “A experiência interior”, de 1943, “A parte maldita”, de 1949, e “O erotismo”, também de 1957. O conceito que amarra essas obras com a literatura é a comunicação na concepção muito particular que recebe no desenvolvimento teórico de Bataille e que contradiz seu sentido contemporâneo. Longe de ser uma troca mediada pela informação, a comunicação é para Bataille a supressão momentânea da diferença entre dois seres no erotismo, entre a carne e o espírito na experiência mística e entre a vida e a morte no excesso e na violência. O caminho para essa experiência impossível passa pela transgressão, pela proibição e pela angústia. A literatura em seu sentido moderno só existe em função do esforço dessa comunicação por via de sua irresponsabilidade infantil, sua culpa, seu sacrifício, sua apropriação do mal e sua antecipação da morte.

A missão da poesia é querer o impossível, e não só ser o reflexo das coisas. Se para Sartre a questão fundamental era a manifestação da liberdade na escolha existencial, cujo limite era a morte, Bataille ressalta na literatura a ação que exercita sua liberdade alavancada pela morte e pela suspensão dos freios diante da vida sensível. Essa aposta arriscada é, na visão do autor, seu exemplo soberano. Para o leitor contemporâneo, o que “A literatura e o mal” ainda traz é a interrogação contínua do que a literatura em essência é.

*Karl Erik Schøllhammer é professor do Departamento de Letras da PUC-Rio