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Livro de Gonçalo M. Tavares convida o leitor a perder-se anos 1900 adentro

'Uma menina está perdida no seu século à procura do pai' tem narrador atemporal
O português Gonçalvez M. Tavares Foto: Steve Stoer/Agência O Globo
O português Gonçalvez M. Tavares Foto: Steve Stoer/Agência O Globo

RIO — Talvez o maior conflito de “Uma menina está perdida no seu século à procura do pai” seja o do resenhista ao abordar o livro. Por onde entrar? Por quais dos tantos símbolos conduzir o leitor? O título da obra sugere pistas: há uma menina, sim, perdida, e seu nome é Hanna. Está perdida e é portadora da trissomia 21, ou síndrome de Down. Parece que aí já temos assunto para muito mais do que este espaço. Mas, também no título, está o século. Que século? Poucas vezes, numa obra de Gonçalo M. Tavares, a demarcação do tempo histórico esteve tão evidente. Não há dúvidas, especulações: é o século XX, especialmente se entendido como período que se inicia na primeira das grandes guerras. O que fica mais interessante se levarmos em conta que até pouco tempo, aqui mesmo no GLOBO, Gonçalo publicava sua breve história do século XX. Esse é um tema, com suas guerras, a pretensa devoção à razão, o salto exponencial da tecnologia e da técnica, que obsessiona o autor.

Mas há mais: a menina Hanna, perdida no século XX, é encontrada  por um sujeito sem passado ou futuro: Marius. E ele, que não está no título, é o verdadeiro condutor da narrativa. Marius vê Hanna, segurando uma cartolina com instruções para si mesma, em uma esquina de uma cidade europeia. Ao contrário dos outros transeuntes, não só vê, mas repara nela, aproxima-se e tenta ajudá-la a encontrar o pai, apesar da quase impossibilidade de comunicação. A partir daí, de certo modo, “Uma menina...” remete a “Terra sonâmbula”, de Mia Couto, ou a “A estrada”, de Cormac McCarthy. Em um mundo desolado, um adulto e uma criança que só têm em comum a ausência de passado e a névoa do futuro, unem-se por um laço frágil e partem em uma espécie de jornada.

Aí surge o narrador dessa história, provavelmente Marius. E digo provavelmente porque é um narrador instável, flutua entre primeira e terceira pessoas dentro de um mesmo parágrafo sem aparente necessidade. Por vezes, fala de Marius e Hanna; por vezes, é Marius com Hanna, numa construção que, a princípio, estranha, mas, aos poucos, ganha organicidade e significações. Ele deixa escapar, por vezes, que está em fuga, tem segredos, mas nada revela. “Tentei explicar-lhe que não era um homem muito falador. Gosto de ouvir, disse-lhe, não tenho muito para dizer”, diz, em primeira pessoa, numa fala muito reveladora de algo decisivo no jogo da obra: Marius é um protagonista que oferecerá protagonismo para esconder seus segredos. Após tentar saber de Hanna e não obter respostas da menina com dificuldades de comunicação, parte com ela ao encontro de uma série de personagens. Temos os discursos e as ideias de Fried e seus cartazes; Vitrius e seus cadernos de números; os donos do hotel cujos quartos têm nomes de campos de concentração; e toda uma galeria que abre espaço para Gonçalo gerar estranhamento na potência máxima. E, assim, nos fazer pensar sobre o que é normal não só no século XX, mas no século em que cada um vive.

PV Capa do livro "Uma menina está perdida no seu século à procura do pai" de Gonçalo M. Tavares Foto: Divulgação
PV Capa do livro "Uma menina está perdida no seu século à procura do pai" de Gonçalo M. Tavares Foto: Divulgação

O questionamento da normalidade pode estar mais evidente no espelho Marius x Hanna, a menina que carrega uma caixinha repleta de lições para portadores de trissomia 21 conviverem em sociedade. Lições, no fim das contas, complexas como “Ocupar os seus tempos livres de maneira adequada”. Mas a discussão sobre normalidade ganha força e densidade quando, por exemplo, Vitrius relata sua tradição familiar de preencher cadernos com números sequenciais, “Não há qualquer objectivo numa corrida de resistência [...] Isto é uma corrida de resistência. Trata-se de resistir [...] não há mais nada”. E o que é a vida senão resistir? Qual a diferença de preencher cadernos para colar figurinhas, ver TV, escrever livros? Hábitos, tradições, motivos para seguir adiante, podemos pensar.

Ou ainda, há a cena em que Marius, após perder-se por horas na escuridão da inusual geometria do hotel, com o desespero de vir a ser encontrado dormindo no corredor, sente alívio quando enfim vê a placa que identifica seu quarto e lê: Auschwitz. Uma provocação sobre o significado intrínseco de palavras e coisas. Será possível um dia ler Auschwitz e ter pensamentos positivos?

E essas são apenas algumas das questões que Gonçalo toca e atiça nesse passeio por um século que parece, a despeito de calendários, não terminou. E que na indecisão de Marius entre ser primeira pessoa e indivíduo que age, ou ser uma terceira pessoa na massa “como se já não estivesse ali o seu corpo, mas apenas o resto, aquilo que pode olhar de fora o seu corpo”, no limite, leva a pensar se não somos todos Hanna e Marius, perdidos entre séculos pessoais e cronológicos, se não em busca de um pai, de uma origem, ao menos em busca de fins, sentidos, significados para tudo o que foi e para o que vier pela frente.

*Reginaldo Pujol Filho é autor de “Só faltou o título” e organizador da Coleção Gira de literatura de língua portuguesa da editora Dublinense