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'O turista aprendiz', diário das viagens de Mário de Andrade, é relançado

Reeditado após 30 anos, livro mostra encontro do autor com culturas do Norte e do Nordeste

Mário de Andrade na ilha do Mosqueiro, no Pará, em 1927
Foto: Reprodução/Coleção Mário de Andrade/IEB-USP
Mário de Andrade na ilha do Mosqueiro, no Pará, em 1927 Foto: Reprodução/Coleção Mário de Andrade/IEB-USP

RIO - Quando Mário de Andrade escreveu “Dois poemas acreanos”, em 1925, o mais longe que tinha ido de São Paulo era Minas Gerais. Mas naqueles versos o modernista já sugeria onde estava sua cabeça na época: “Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim,/ Na escuridão ativa da noite que caiu,/ Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,/ Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,/ Faz pouco se deitou, está dormindo./ Esse homem é brasileiro que nem eu…”

Nos anos seguinte, Mário colocou em prática esse desejo de ampliação de horizontes, em duas longas viagens. Na primeira, de maio a agosto de 1927, seguiu “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, por Marajó até dizer chega”, como escreveu na época. Na segunda, de novembro de 1928 a fevereiro de 1929, passou por Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba com um foco mais específico: a pesquisa das culturas populares.

Nessas viagens, refletiu sobre o que via em diários, rabiscos apressados e crônicas para jornais. Essas notas só foram publicadas em conjunto 31 anos depois da morte do escritor, no livro “O turista aprendiz” (1976), organizado pela professora e pesquisadora Telê Ancona Lopez, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP. Há mais de três décadas fora de catálogo, a obra, que ilumina um momento crucial no pensamento do autor de “Macunaíma” sobre o Brasil, enfim ganha nova edição, numa parceria entre o IEB e o Iphan. O lançamento será dia 12, às 20h, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, no primeiro dia do seminário “Viva Mário!”, com curadoria de Eduardo Jardim, autor da biografia “Eu sou trezentos” (Edições de Janeiro).


Capa da nova edição de "O turista aprendiz"
Foto: Divulgação
Capa da nova edição de "O turista aprendiz" Foto: Divulgação

A nova edição foi organizada por Telê e Tatiana Longo Figueiredo, pesquisadora do IEB, com a colaboração de Leandro Fernandes. Além dos textos de Mário, ela traz o CD-ROM “Os diários do fotógrafo”, dedicado às imagens feitas pelo escritor viajante com a câmera que chamava de “Codaque” e um DVD com o documentário “A casa de Mário”, dirigido por Luiz Bargman, sobre o sobrado na Rua Lopes Chaves, em São Paulo, onde o autor passou a maior parte da vida. Há ainda fac-símiles de manuscritos, desenhos e artigos de Mário, um ensaio de Telê e Tatiana sobre os diários, um texto de José Tavares Correia de Lira sobre sua contribuição para a noção de patrimônio cultural no Brasil e mapas com as rotas das viagens do autor.

Uma das principais especialistas na obra do escritor, responsável pela organização do Arquivo Mário de Andrade no IEB, Telê diz que “O turista aprendiz” é até hoje um livro de “impressionante atualidade”, que mostra “o valor de uma postura sem preconceitos, em sua capacidade de viver o Brasil” e “denunciar descaminhos”:

— A imersão na singularidade do Brasil mudou Mário de Andrade, fecundou a criação do artista e os projetos do etnógrafo, do musicólogo, do historiador da arte, do defensor do nosso patrimônio material e imaterial — diz Telê, que trabalha em um livro com trechos da obra de Mário em que o escritor reflete sobre a própria vida, intitulado “Traje de arlequim”.

SEMINÁRIO DEBATE ATUALIDADE DE MÁRIO

A imersão de Mário no Brasil é registrada em passagens memoráveis de “O turista aprendiz”. Uma das mais célebres é o relato de seu encontro com o cantador de coco Chico Antônio, em janeiro de 1929, em um engenho nos arredores de Natal (RN). Ouvi-lo foi “uma das comoções mais formidáveis da minha vida”, escreveu Mário. O talento do cantador aguçou nele a ideia de mescla entre as culturas erudita e popular. Quando Chico Antônio canta, “não se sabe mais se é música, se é esporte, se é heroísmo”, escreve Mário, que o compara a “uma dúzia de Carusos”.


Caricatura de Mário de Andrade feita em Iquitos, Peru, por Victor Morel, em 1927
Foto: Reprodução/Coleção Mário de Andrade, IEB-USP
Caricatura de Mário de Andrade feita em Iquitos, Peru, por Victor Morel, em 1927 Foto: Reprodução/Coleção Mário de Andrade, IEB-USP

A postura sem preconceitos observada por Telê aparece na abertura do escritor para as religiões de origem indígena e africana, que enfrentavam a perseguição das autoridades na época. Também em Natal, Mário teve o corpo fechado numa casa de catimbó. Em suas notas sobre a cerimônia, transparece um misto de fascínio e ceticismo: “É impossível descrever tudo o que se passou nessa sessão disparatada, mescla de sinceridade e de charlatanismo, ridícula, dramática, cômica, religiosa, enervante, repugnante, comovente, tudo misturado. E poética”.

O evento “Viva Mário”, que acontece entre os dias 12 e 14, vai colocar em discussão suas ideias sobre cultura, mas também outros aspectos de seu trabalho, como sua relação com a música, o cinema e as artes visuais, sua atuação como diretor do Departamento de Cultura de São Paulo e, claro, sua obra literária. Entre os participantes, além de Telê e Eduardo Jardim, estão pesquisadores como José Miguel Wisnik, Pedro Duarte e Florencia Garramuño, entre outros. Para Jardim, Mário ainda é atual, mas é preciso buscar novas maneiras de formular as questões que ele colocou em seu tempo.

— Mário aposta numa ideia de Brasil como unidade composta de diversidades. Ele pensa a cultura nacional levando em consideração a contribuição de diversos setores da sociedade, não incorporou só aquilo que tradicionalmente se entendia por cultura erudita. Há algumas limitações, como reduzir a compreensão de cultura popular ao folclore. Mas preocupações dele continuam atuais e têm que ser discutidas.

TRECHOS DE ‘O TURISTA APRENDIZ’

Belém, 1927

Belém é a cidade principal da Polinésia. Mandaram vir u’a imigração de malaios e no vão das mangueiras nasceu Belém do Pará. Engraçado é que a gente a todo momento imagina que vive no Brasil mas é fantástica a sensação de estar no Cairo que se tem. Não posso atinar porque... Mangueiras, o Cairo não possui mangueiras evaporando das ruas. Não possui o sujeito passeando com um porco-do-mato na correntinha... E nem aquele indivíduo que logo de-manhã pisou nos meus olhos, puxa comoção! inda com rabo de sobrecasaca abanando...

Natal, 1929

Estou divinizado por uma das comoções mais formidáveis da minha vida. Chico Antônio apesar de orgulhoso: “Ai, Chico Antônio/ Quando canta/ Istremece/ Esse lugá!” Não sabe que vale uma dúzia de Carusos. Vem da terra, canta por cantar, por uma cachaça, por coisa nenhuma e passa uma noite cantando sem parada. Já são 23 horas e desde as 19 que canta. Os cocos se sucedem tirados pela voz firme dele. Às vezes o coro não consegue responder na hora o refrão curto. Chico Antônio pega o fio da embolada, passa pitos no pessoal e “vira o coco”.