MADRI — Inicialmente era uma torrada embebida com chá, depois um biscoito tradicional, de massa dura, e, finalmente, uma madeleine, esse confeito macio, de textura algodoada e sabor ligeiramente doce. Esta foi a evolução de um dos elementos-chave da literatura mundial, criado por Marcel Proust (1871-1922) em seu ciclo narrativo “Em busca do tempo perdido”, cujo primeiro volume, “No caminho de Swann”, foi publicado em 14 de novembro de 1913. A metamorfose do acepipe que deflagra recordações involuntárias no escritor francês (que, a partir daí, conta a trajetória de sua vida e viaja pelos labirintos do tempo e da memória) é revelada nos manuscritos da obra, que acabam de ser publicados pela primeira vez e serão lançados hoje, na França, pela Éditions des Saint-Pères.
MOLESKINES HISTÓRICOS
“É nesses cadernos que encontramos pela primeira vez esta sensação: uma espécie de Big Bang proustiano”
Fundada em 2012, a editora independente é especializada na reprodução de esboços de grandes autores. Já publicou rascunhos de Boris Vian, Voltaire, Julio Verne, Jean Cocteau e Jean-Luc Godard.
No caso de “Em busca do tempo perdido”, a reprodução é apresentada na forma de três moleskines (bem semelhantes aos usados pelo escritor), com fac-símiles de anotações e textos escritos a lápis, a partir de 1907, em seu apartamento no Boulevard Haussmann , em Paris, e no Grand Hôtel de Cabourg, na Normandia.
Na tiragem inicial, de mil exemplares, os três moleskines virão dentro de uma caixa. Na França, esse conjunto custará € 249. São, ao todo, 268 páginas: uma amostra pequena e representativa das dezenas de milhares de folhas rascunhadas pelo autor.
“Estes três cadernos inéditos nos permitem viajar à gênese do momento mais emblemático do universo proustiano”, descreve a editora em um comunicado.
O primeiro moleskine da caixa é chamado de “O manuscrito da torrada”, o segundo é “O manuscrito do biscoito” e o terceiro, “O manuscrito das pequenas madeleines”. Nas anotações em papel amarelado é possível ver muitos trechos riscados e até alguns desenhos feitos por Proust. É uma apresentação, etapa a etapa, do processo criativo a partir das memórias despertadas por um sabor da infância.
No prefácio da reprodução, Jean-Paul Enthoven, estudioso de Proust, descreve: “É nesses cadernos que encontramos pela primeira vez esta sensação: uma espécie de Big Bang proustiano”.
“Ele almejava atribuir a uma criança o cúmulo de preocupações e inquietações neuróticas que poderiam corresponder a um adulto sofisticado”
Nos primeiros rascunhos, de 1908, era a torrada com chá que dava ao escritor o paladar da imaginação. Em 1910, após alguma hesitação, veio o biscoito. Por fim, foi escolhida a madeleine, com seu formato de concha.
“Marcel Proust pretendia anular a cômoda simplicidade do ato de recordar; almejava atribuir a uma criança o cúmulo de preocupações e inquietações neuróticas que poderiam corresponder a um adulto sofisticado e consciente de si. Não era suficiente registrar as memórias, mas trazer à tona a emoção, envolvida por metáforas e comparações”, analisou o autor irlandês Colm Tóibín em 2013, por ocasião do centenário de lançamento da primeira publicação de “Em busca do tempo perdido”.