RIO - Um livro “matador” — para usarmos o jargão do mercado editorial para um sucesso de vendas — deve começar a fazer suas vítimas bem antes de chegar às livrarias. Poucos produtos se encaixam melhor na categoria do que “Vá, coloque um vigia” (“Go set a watchman”, no original), o inesperado novo romance de Harper Lee.
A notícia de que a autora americana teria escrito mais um livro foi um petardo. Isso porque Harper Lee, hoje com 89 anos e internada numa clínica para idosos, havia desistido de escrever após a publicação, em 1960, de “O sol é para todos” (“To kill a mockinbird”). A obra, um fenômeno, ganhou o Prêmio Pulitzer e vendeu até hoje mais de 40 milhões de exemplares. Assustada ou surpresa com o próprio êxito, a escritora preferiu o silêncio, à Salinger.
“Vá, coloque um vigia” teria sido achado numa caixa de papelão na casa de Lee, no Alabama. Seria uma suposta primeira versão de “O sol é para todos”, modificada a pedido dos editores. Os mesmos editores que garantiram à autora que “To kill a mockinbird” não venderia muito, no máximo uns mil exemplares.
Os representantes legais de Lee afirmam ter tido o consentimento dela para publicar o romance, embora o biógrafo da escritora, Charles J. Shields, conteste a autorização. Segundo Shields, ela sempre se opôs à publicação do manuscrito. Com tanto barulho e vendas — só a primeira edição, lançada em julho nos países de língua inglesa, pegou uma tiragem inicial de dois milhões de cópias —, já se fala na existência de um terceiro livro...
Bem, se “Go set a watchman” era um primeiro tratamento da obra famosa, voltemos a ela. “O sol é para todos” (título pelo qual ficou conhecido no Brasil o romance, na esteira do filme estrelado por Gregory Peck) aborda o preconceito racial numa pequena cidade do sul dos EUA durante a Depressão dos anos 1930. Mais que isso: acompanha a vida e as travessuras de dois irmãos, Jem e Scout, filhos do advogado Atticus Finch, que aceita defender o negro Tom Robinson, acusado de estuprar uma jovem branca. Há ainda outro menino na trama, o fabulador Dill, inspirado em Truman Capote, amigo de infância da autora.
O romance é narrado pelos olhos de Scout, que no início da história tem seis anos, e isso faz toda a diferença. Como no Huckleberry Finn de Mark Twain ou no Holden Caufield de J. D. Salinger, o estilo é coloquial, ingênuo e imaturo, na voz de uma garota cheia de graça e que se acha mais esperta do que realmente é, fazendo um contraponto perfeito ao mundo adulto. A impressão é que ouvimos um bom papo. Mas é ilusão: tudo é resultado de um esforço bem calculado e de uma escrita sob absoluto controle.
Essas características infelizmente se perdem em “Vá, coloque um vigia” (o título é estranho, mas o livro está bem traduzido por Beatriz Horta). Jean Louise Finch, ex-Scout, que agora tem 26 anos e mora em Nova York, volta a casa para visitar o velho pai Atticus. O tempo passou, mas não as tensões relacionadas aos direitos civis. Tampouco a maneira que Lee escolhe para confrontá-las, com exemplos didáticos e alegorias moralizantes.
Narrando em terceira pessoa, a prosa da autora não tem o mesmo encanto. O melhor do romance “descoberto” são as memórias do tempo de garotinha, e o reencontro com alguns personagens de “O sol é para todos”. Este era “um livro para crianças”, nas palavras de Flannery O’Connor, outra escritora sulista cujos fantasmas e pesadelos são, digamos, mais adultos que os de Harper Lee. Como a maioria dos atores mirins, Scout envelheceu mal.
Alvaro Costa e Silva é jornalista
VÁ, COLOQUE UM VIGIA
Autora: Harper Lee
Editora: José Olympio
Tradução: Beatriz Horta
Cotação: Regular